Arrisco dizer que a morte, esta que sempre deixamos para depois, parece nos convidar a um diálogo diferente por conta da realidade que o mundo vive nesses tempos difíceis de pandemia. Não está fácil para ninguém. No Brasil já estamos chegando a 100 mil mortes pelo novo coronavírus. Com isso, já temos em nosso país de 600 mil a um milhão de enlutados. Acreditam? Pois é, conforme estudo epidemiológico feito pelo Japão e EUA, divulgado recentemente pelo G1, a cada morte, pelo menos seis pessoas são diretamente impactadas. Para complementar, a geriatra brasileira com especialização em Oxford, Ana Claudia Quintana Arantes, diz que cada morte abala a saúde emocional de até 10 pessoas. Fez as contas?

Independentemente dos números, há de se considerar que o impacto primário é na família e amigos próximos. Estes têm sofrido com a ausência e a forma rápida dos rituais de despedidas dos seus entes queridos. Não há um plano B. Esses rituais foram transformados, sim. Os números citados justificam (não por si só, uma vez que há uma cadeia política por detrás deles) a urgência de tratarmos, mais e mais, a temática do luto. Estamos tentando. É um processo. Estudiosos da área de psicologia afirmam que a ausência de rituais de velório dificulta, em geral, o processo de luto, sendo necessário o desenvolvimento de estratégias que possam minimizar, um pouco, a falta do apoio físico direto, como, por exemplo, fazer uso das redes sociais. Mas postar o quê?

O luto, por exemplo, ganhou as lives do mundo virtual. A dor, para fundir-se em milhões de outras, passou a ser digitalizada. Isso é um bom sinal. Há muita gente, aqui e no resto do mundo, fazendo a sua parte. São muitos profissionais tratando desse pesar. Eu, que há alguns anos venho num processo de entendimento e compreensão do tema, tenho tentado dar a minha contribuição. É reconfortante.

Certamente, nada substitui o abraço caloroso, mas a interação, ouvir o outro confortando nossa dor é acalanto para a alma de quem está isolado socialmente. A migração do luto para as redes sociais é algo positivo, segundo especialistas que tenho ouvido, funciona como mais uma estratégia para minimizar a falta do apoio físico direto, daquele calor que a gente precisa nessas horas.

E quando o luto é antecipatório? Pessoas com familiares hospitalizados pela covid-19, por exemplo, estão nessas circunstâncias, marcadas pela impossibilidade de interação social. Diante do não saber como o organismo da pessoa querida vai reagir ao vírus, experimenta-se um pesar antes mesmo de ter havido a morte. Não se fala muito do luto antecipatório, mas é de uma dor considerável — quem já acompanhou parente em hospital sabe disso. É importante apoiá-los, mesmo à distância.

Em geral, evita-se falar com amigos e demais parentes sobre o tema da morte. Cria-se uma espécie de isolamento emocional. E não precisa ser especialista para saber que esse comportamento pode fazer mal. Digo PODE, porque algumas pessoas conseguem trabalhar o luto rapidamente e não necessitam dessa estratégia de fala ou terapêutica. Tenho lido em fontes confiáveis que estamos atravessando o período mais crítico e tenso da doença. Isso também ecoa aqui no Tocantins, com a oscilação no número de casos e de mortes. Estamos recorrendo a matérias jornalísticas, a entrevistas e lives, às redes sociais para daí acionarmos o botão da empatia. Precisamos “postar”, ajudar.

Numa rápida visita à literatura, percebemos que a experiência da perda durante a Idade Média, até início do século XIX, se dava por meio de rituais coletivos de luto, sendo muito valorizada e esperada a expressão pública da experiência da perda: o choro desesperado. A partir do final da Idade Média, as cerimônias coletivas foram dando lugar a ritos individuais. O afastamento da morte foi ganhando fôlego. O modo de enlutamento passou a ser exclusivo do ser que sofre e da família próxima, com a ideia de não perturbar o outro com a dor. O luto passou de evento público para evento privado.

Algumas pesquisas realizadas no Brasil têm estudado o comportamento do enlutado no país. Koury (2003) investigou a relação entre o luto e a sociedade contemporânea. Entre os resultados que obteve, o de que o brasileiro prefere o comportamento discreto para quem está vivendo o luto (77,6%); e que não se deve importunar o enlutado (72%). Para o autor, são dados que revelam um valor mais intimista e privado das vivências diante de um luto, para quem vive e para quem acompanha. E agora, com a covid-19? O que muda? O que mudou?

Numa das recentes pesquisas sobre o luto – feita bem antes da pandemia – pelo Sindicato de Cemitérios e Crematórios de São Paulo – SINCEP/2018, com mil brasileiros/as e divulgada pelo site https://www.bbc.com/portuguese/brasil-45596113, o luto é considerado um tabu para 73% dos nacionais e 30,4% não sabem com quem falar sobre a morte.

Um Artigo publicado ainda em 2014 no site http://www.periodicos.usp.br/psicousp/article/download/85479/88273  já fazia uma abordagem qualitativa sobre o facebook como novo local para a manifestação de uma perda significativa. Entre os resultados, o estudo mostra que as novas tecnologias e práticas interacionais podem contribuir para uma mudança na maneira da sociedade lidar com a morte e com o enlutado. Além deste, outros mais recentes abordam os mesmos aspectos.

Nesse sentido, o mundo contemporâneo parece favorecer as relações sociais no processo de luto, facilitando sua exposição. O compartilhamento do luto na internet, também chamado de luto na forma online, tem sido observado com bastante frequência por meio de perfis no instagram, twitter, facebook, que oferecem uma forma cada vez mais interativa de narrar a dor e as emoções vividas, permitindo ao enlutado sentir-se acolhido no enfrentamento de seu sofrimento, tendo o sentimento de desamparo diminuído, principalmente nesse tempo de distanciamento social.

Desse modo, o apoio ao luto é indispensável para a grande maioria de nós, uma vez que pode amenizar o período crítico provocado pela perda de alguém. Esse apoio inclui ouvir sem julgar e, sobretudo, fazer eco das narrativas do que o enlutado deseja e precisa contar – papel do profissional chamado Conselheiro de Luto, preparado para conversar e apoiar o enlutado, e detectar quando o caso precisa de intervenção terapêutica do psicólogo.

Importante lembrar que esse papel é também de todos nós e que exercitando esse espaço dialógico de apoio não cabe opinião sobre o tempo da dor, ou as frases clássicas “você é forte, vai superar”; ou “foi melhor assim”. Melhor para quem? É tempo de empatia.

É significativo dar voz às experiências humanas de sofrimento, assim como às experiências de coragem, amor e esperança. Graças à internet, é possível acompanhar o velório ou cremação de alguém do outro lado do mundo e demonstrar, por mensagens ou palavras em tempo real, o lamento pela dor.

Portanto, em momentos como o atual, a recomendação é usar a criatividade. Por que não viralizar boas atitudes? Considero bem sugestivo estarmos à disposição, pelo telefone, pelas redes off e online, fazer algo prático como levar compras e deixar na porta da casa da pessoa que você sabe estar precisando, enviar fotos do ente querido em momentos felizes, gravar áudios para a pessoa em luto, enfim, assumir a posição de escuta, de humano. A covid-19, paradoxalmente, também pode implicar na descoberta do bem que há em cada um de nós. O que você sugere?

 

Jornalista, advogada e mestranda em Comunicação e Sociedade pela UFT/PPGCOM. Na área jornalística trabalhou em diversas Assessorias de Comunicação e em Agência de Publicidade. É Conselheira de Luto com formação em Aveiro, Portugal. instagram @conselhosparaoluto.  E- mail: jannamonteiro@gmailcom

Luto online e covid-19: é tempo de empatia na rede

Por Janete Monteiro Gomes