Cerca de 713 mil meninas brasileiras vivem sem acesso a banheiro ou chuveiro em seu domicílio e mais de 4 milhões não têm acesso a itens mínimos de cuidados menstruais nas escolas. É o que mostra o relatório “Pobreza Menstrual no Brasil: desigualdade e violações de direitos”, lançado pelo Fundo de População das Nações Unidas (UNFPA) e pelo Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef) neste Dia Internacional da Dignidade Menstrual.
O estudo faz um panorama da chamada pobreza menstrual no país, termo usado para denominar a falta de acesso a recursos, infraestrutura e até conhecimento por parte de pessoas que menstruam para cuidados envolvendo a própria menstruação.
A pobreza menstrual diz respeito não só a falta de acesso a absorventes – sejam eles descartáveis ou não -, saneamento básico, água e infraestrutura de higiene na casa e na escola, mas também à desinformação. Ela afeta especialmente as brasileiras que vivem em condições de pobreza e de extrema vulnerabilidade em contextos rurais e urbanos. Os resultados demonstrados no relatório, de acordo com o UNFPA, demonstram negligência por parte do Estado e falta de garantia de direitos em boa parte do país.
O estudo identificou que 4 milhões sofrem com pelo menos uma privação de higiene nas escolas. Isto inclui falta de acesso a absorventes e instalações básicas, como banheiros, sabonetes e papel higiênico. A falta deste item atinge milhão de meninas, ou seja, 11,6% do total de alunas. Outras 200 mil alunas estão totalmente privadas de condições mínimas para cuidar da sua menstruação na escola.
Além da privação de chuveiros e banheiros identificada na residência de 713 mil meninas brasileiras, elas também estão sob situação de grande vulnerabilidade envolvendo outros serviços básicos que são essenciais para garantir a dignidade menstrual: 900 mil não têm acesso à água canalizada em seus domicílios e 6,5 milhões vivem em casas sem ligação à rede de esgoto.
O fenômeno é afetado por outras variáveis envolvendo a desigualdade racial, social e de renda. Uma família com maior situação de vulnerabilidade e renda menor tende a dedicar uma fração menor de seu orçamento para itens de higiene menstrual, uma vez que a prioridade é a alimentação. De acordo com o estudo, a chance de uma menina negra não possuir acesso a banheiros é quase 3 vezes a chance de encontrarmos uma menina branca nas mesmas condições. Além disso, enquanto cerca de 24% das meninas brancas residem em locais avaliados como não tendo serviços de esgotamento sanitário, quase 37% das meninas negras vivem nessas condições.
Conduzida pela pesquisadora Carolina Costa Moraes, o estudo foi feito a partir de dados do IBGE, por meio da Pesquisa Nacional de Saúde (PNS), da Pesquisa Nacional de Saúde Escolar (PeNSE) e da Pesquisa de Orçamentos Familiares (POF). Por isso, o relatório não incorpora os impactos da pandemia, que pode ter agravado o problema da pobreza menstrual em função da redução drástica na renda de milhares de famílias e do fechamento das escolas.
UNFPA e Unicef consideram que a necessidade de enfrentamento da pobreza e redução das desigualdades — que tanto se exacerbaram no Brasil durante a pandemia — incorpora necessariamente a urgência ao tratamento do problema da pobreza menstrual e seu impacto nas futuras gerações.
— A menstruação é uma condição perfeitamente natural que deve ser mais seriamente encarada pelo poder público e as políticas de saúde. Quando não permitimos que uma menina possa passar por este período de forma adequada, estamos violando sua dignidade. É urgente discutir meios de garantir a saúde menstrual, com a construção de políticas públicas eficazes, com a distribuição gratuita de absorventes, com uma educação abrangente para que as meninas também conheçam seu corpo e o que acontece com ele durante o ciclo menstrual. É o básico a ser feito para que ninguém fique para trás — afirma Astrid Bant, representante do UNFPA no Brasil.
Impactos fisiológicos, emocionais e sociais
A dificuldade de acessar serviços e a pobreza menstrual têm impactos fisiológicos, psíquicos e sociais na vida de meninas e mulheres e podem ser fatores de estigma e discriminação, levando muitas vezes à evasão escolar.
O relatório lançado hoje alerta para que já vem sendo amplamente debatido. Quando não há acesso adequado aos produtos de higiene menstrual, diversas pesquisas em várias regiões do mundo reportam que meninas e mulheres recorrem a soluções improvisadas para conter o sangramento menstrual, com pedaços de panos usados, roupas velhas, jornal e até miolo de pão.
Outras não têm acesso a um número suficiente de absorventes descartáveis para fazer as trocas necessárias ao longo do dia, conforma indicação de ginecologistas. Ambas as realidades podem implicar em problemas de ordem fisiológica, como alergias e infecções na região urogenital, e de ordem emocional, causando desconfortos, insegurança e estresse.
O relatório alerta ainda para o que considera uma “vilanização” dos produtos de higiene menstrual descartáveis, sob o discurso de proteção ao meio ambiente. “Esse discurso desconsidera as necessidades de menstruantes que vivem em situação de vulnerabilidade, em que não há acesso à água limpa para a higienização adequada dos reutilizáveis, seja um produto de tecido ou mesmo do coletor, e pode penalizar as pessoas com mais tempo gasto para o manejo menstrual, uma vez que é preciso lavar o protetor ou calcinha menstrual.Desconsiderar essas peculiaridades pode contribuir para negar o acesso aos direitos menstruais.”
Desinformação também é pobreza menstrual
O desconhecimento sobre o cuidado da saúde menstrual não afeta só pessoas em situação de pobreza, mas tem um impacto mais abrangente. A partir da falta de informação, meninas e mulheres podem enfrentar a falta de produtos para a adequada higiene menstrual por considerarem — elas próprias ou a família, que decide sobre a alocação do orçamento — o absorvente como um item supérfluo.
Além disso, ao não falar sobre a menstruação, preconceitos e tabus são fortalecidos e continuam sendo perpetuados no dia a dia. “Não nomear a menstruação usando no lugar eufemismos como ‘estar naqueles dias’, ‘estar de chico’, ‘regras’, significa tornar invisível um fenômeno fisiológico e recorrente, além de alimentar mitos e tabus extremamente danosos às mulheres, meninas e pessoas que menstruam de maneira geral”, informa o relatório da UNFPA.
O estudo alerta para as imposições culturais que se consolidam a partir do momento que uma pessoa menstrua pela primeira vez. “Diz-se que ela ‘agora é mulher’, ordena-se que ‘feche as pernas’ e se comporte como ‘mocinha’, não reconhecendo que essas meninas ainda são crianças e não deveriam ser expostas a crenças tão limitadoras e restritivas, expondo-as a tabus e sentimentos de vergonha.”
Unicef e UNFPA defendem no relatório que a educação integral em sexualidade, incluindo a educação menstrual, deve ser mais amplamente difundida, “não apenas com o enfoque para prevenção à gravidez não intencional, mas também como uma ferramenta para que as pessoas que menstruam conheçam seus próprios corpos, conheçam seu ciclo menstrual e haja promoção de bem-estar.”
A representante do Unicef no Brasil, Florence Bauer, ressalta a importância do acesso à informação correta para combater a pobreza menstrual no Brasil:
— Muitas meninas ainda sofrem com estigmas relacionados à menstruação, o que tem grande impacto em sua autoestima para toda a vida. Isso traz consequências para a socialização com sua família e seus pares, muitas vezes refletindo, inclusive, na vida escolar, especialmente entre adolescentes, levando até ao abandono dos estudos. Por isso, é essencial que tenham acesso a informações corretas sobre o tema, além de condições dignas de higiene, e que a discussão seja feita abertamente na sociedade para impulsionar melhorias.