Nem chiques, chicx ou chic@s. Essas expressões que poderiam caracterizar gênero neutro para chico ou chica (garoto ou garota, em espanhol) foram proibidas nas escolas de Buenos Aires, capital da Argentina. Os professores não poderão mais usar essas formas, cada vez mais populares, para se comunicar com os alunos.
Nos últimos anos, esse tema tem sido debatido em diversos países. O espanhol não é o único idioma que diferencia claramente masculino e feminino e que viu o surgimento de novas (e controversas) expressões neutras que buscam torná-lo mais inclusivo.
O uso dessa linguagem também é alvo de muitas polêmicas no português. No Brasil, há diversas tentativas de coibir o uso dessas expressões, e o assunto foi parar no Supremo Tribunal Federal (STF). Outro país que também enfrenta debates sobre o tema é a França.
Real Academia Espanhola criticou, em informe oficial, o uso da linguagem neutra — Foto: Getty Images/Via BBC
A capital argentina está atualmente em evidência sobre essa discussão porque o governo local emitiu, em junho, uma norma para impedir o uso da chamada “linguagem inclusiva” ou “neutra” na educação inicial, primária e secundária.
Essa decisão em Buenos Aires proíbe o uso das terminações de gênero neutro, como “e”, “x” ou “@”, nas comunicações institucionais e veta que elas sejam ensinadas como parte do currículo escolar.
E também exige que todo o aprendizado ocorra “de acordo com as regras da língua espanhola”.
No fim do ano passado, ministro Edson Fachin suspendeu medida que proibia o uso de linguagem neutra em escolas de Rondônia — Foto: Nelson Jr./SCO/STF/Via BBC
Ao justificar a decisão, as autoridades de Buenos Aires argumentaram que os alunos obtiveram baixos resultados nas últimas avaliações de leitura e escrita.
“A deformação do uso da linguagem tem um impacto negativo na aprendizagem, especialmente considerando as consequências da pandemia”, argumentou o Ministério da Educação de Buenos Aires.
“É muito importante esclarecer bem e simplificar o aprendizado”, acrescentou o prefeito de Buenos Aires, Horacio Rodríguez Larreta, após uma onda de críticas à medida.
A resolução em Buenos Aires se “aplica unicamente aos conteúdos ditos pelos docentes nas salas de aula, ao material entregue aos estudantes e aos documentos oficiais das escolas” e ressalta que os alunos podem seguir utilizando a linguagem neutra entre eles.
O governo de Macron na França proibiu, por meio de lei, o uso da linguagem neutra nas escolas do país — Foto: Getty Images/Via BBC
A medida até reconhece ser importante “romper com as noções sexistas que permitem o uso genérico do masculino (para falar da população em geral) e incorporar uma linguagem mais inclusiva”.
Mas assegura que o espanhol “oferece muitas opções para ser inclusiva sem precisar distorcer a língua ou adicionar complexidade à compreensão e fluência da leitura”.
Para frisar que há outras opções e que não é necessário converter palavras para o “gênero neutro”, o governo local divulgou um “guia prático de recomendações para uma comunicação inclusiva”.
A norma adotada em Buenos Aires recebeu críticas de educadores, linguistas e até do ministro nacional da Educação na Argentina, que apoia o uso da linguagem neutra e cujo governo faz parte da oposição ao de Buenos Aires.
Vários destacaram que não há evidências de que o uso de linguagem neutra tenha qualquer relação com os baixos resultados nas avaliações de ensino.
Na França, pessoas usam pontos para a linguagem inclusiva, como é possível ver no cartaz do protesto — Foto: Getty Images/Via BBC
O que mais incomodou muitos docentes foi o anúncio de que quem não cumprisse a norma enfrentaria um “processo administrativo disciplinar”.
“Não se pode obrigar, muito menos proibir o uso e os costumes na linguagem”, afirmou a deputada Alejandrina Barry, de Buenos Aires, que apresentou um projeto legislativo para revogar a regra.
A linguagem do gênero neutro
A capital argentina não é a única que se manifestou contra o uso da linguagem neutra.
Como é mencionado nos fundamentos da norma publicada em Buenos Aires, uma das primeiras instituições a rechaçar o uso desses termos foi aquela que é considerada a maior referência neste idioma: a Real Academia Espanhola (RAE).
Em 2020, a RAE publicou um relatório de 156 páginas explicando sua rejeição à linguagem neutra. “O uso de ‘@’ ou de letras como ‘e’ ou ‘x’ como supostas marcas de gênero inclusivo é estranho à morfologia do espanhol”, disse categoricamente.
Além disso, a entidade se declarou contra a proposta de substituir o uso genérico do masculino gramatical – que os mais críticos consideram como o “tijolo simbólico do patriarcado” – por formas mais inclusivas.
“É desnecessário, porque o masculino genérico não esconde a presença da mulher, mas sim a inclui com o mesmo direito que o homem”, argumentou.
Nos países de língua espanhola na América Latina
A capital argentina não foi a primeira da região a buscar limitar o ensino da linguagem neutra.
Em janeiro, o Uruguai tomou medida semelhante quando publicou uma circular afirmando que, no campo da educação pública, o uso da linguagem “deve obedecer às regras da língua espanhola”.
Assim como a resolução de Buenos Aires, a do Uruguai esclarece que suas instruções são dirigidas a funcionários e professores, não às formas de expressão dos alunos.
Esse regulamento foi uma atualização de outra resolução semelhante, que já havia sido publicada pelo governo em 2019.
Além das autoridades da área da Educação, houve outras tentativas de impedir o avanço da linguagem neutra nas escolas e em outros ambientes no país.
Em abril, deputados de um partido de direita apresentaram um projeto de lei para proibir “alterações gramaticais e fonéticas” na administração pública e em centros educacionais públicos e privados.
“O objetivo é que as palavras não sejam modificadas para que se tornem ‘inclusivas’ com E, X ou @. Vamos falar corretamente o nosso idioma”, escreveu no Twitter a deputada uruguaia Inés Monzillo sobre o projeto, que gerou preocupação por parte da associação que representa os professores no país.
Em outros países da região, como o Chile, também houve propostas legislativas para impedir o avanço da linguagem neutra.
A linguagem neutra no Brasil
O Brasil está entre os países nos quais há tentativas para frear o uso de novas expressões consideradas neutras.
No país, o uso desse tipo de linguagem se torna cada vez mais comum. “Menine”, “amigue”, “elu”, “delu”, entre outras expressões têm sido usadas rotineiramente por determinados grupos.
Mas enquanto uns defendem que a adoção dessa linguagem é uma forma de inclusão para as pessoas não binárias (que não se identificam unicamente como homem ou mulher), outros dizem que é uma variação inconcebível na língua portuguesa.
No Brasil, não há qualquer medida que proíba o uso dessas linguagens de forma nacional. Mas há diversas ações locais contra essas expressões.
Em dezembro passado, um levantamento da Agência Diadorim apontou que havia 34 projetos tramitando em Assembleias Legislativas para impedir a variação da linguagem em 19 Estados e no Distrito Federal.
O primeiro a tomar medidas foi Rondônia. Em outubro, o governo estadual sancionou uma lei que proibia o uso da linguagem neutra nas escolas, sob o risco de os professores sofrerem sanções.
O governo argumentou, na época, que a medida foi tomada para estabelecer “medidas protetivas ao direito dos estudantes ao aprendizado da língua portuguesa de acordo com a norma culta”.
No entanto, a lei foi suspensa em novembro por meio de uma decisão liminar do ministro Edson Fachin, do STF, em uma ação que questiona a constitucionalidade da medida.
Na decisão, Fachin mencionou que a lei é uma forma de censura e que possui “graves vícios” que poderiam causar o “silenciamento” dos professores e dos alunos das instituições de ensino. Desde então, a lei segue suspensa.
O debate sobre o tema permanece em todo o país e vez ou outra volta a ter repercussão, principalmente quando há algum novo projeto contra essa linguagem.
Na França
A discussão sobre a linguagem neutra também se tornou recorrente na França. Aliás, este foi o país que tomou a decisão mais abrangente e dura sobre o tema.
Isso porque o ministro da Educação,Jean-Michel Blanquer, assinou uma circular, em maio de 2021, que proíbe o uso dessas escritas inclusivas nas salas de aula.
Ao contrário do que acontece em espanhol e no português com terminações como “e”, “x”, ou “@”, em francês a forma mais utilizada na escrita para conferir neutralidade é um ponto médio (•).
Isso é usado para dar a uma palavra terminações masculinas e femininas, simultaneamente.
Tomemos como exemplo a palavra amis (amigos, em português). A forma neutra seria: ami•e•s, que combina a versão masculina em francês (ami) com a feminina (amies).
Em português seria algo parecido com “amigos/as”.
Blanquer proibiu o uso do ponto médio nas escolas argumentando que “a impossibilidade de transcrever oralmente textos com esse tipo de grafia dificulta tanto a leitura em voz alta quanto a pronúncia e, consequentemente, o aprendizado, principalmente dos pequenos”.
Além disso, o ministro salientou que “constitui um obstáculo ao acesso à língua das crianças que enfrentam determinadas deficiências ou transtornos de aprendizagem”.
É um argumento semelhante ao usado por alguns críticos na língua espanhola ou portuguesa, que afirmam que esse tipo de linguagem, com terminações em x ou @, pode dificultar a leitura para pessoas com dislexia ou cegos e, portanto, em vez de incluir acaba causando exclusão.
Assim como a medida adotada em Buenos Aires, a proibição francesa não rejeita toda a linguagem inclusiva, mas busca outras formas de promover inclusão, recomendando, entre outras coisas, “o uso de termos femininos para ofícios e funções”.
No entanto, as autoridades francesas deixaram claro a oposição ao uso das palavras de gênero neutro quando, no fim de 2021, o renomado dicionário Le Petit Robert incluiu o pronome “iel”, que combina “ele” e “ela” e que é amplamente utilizado por pessoas não binárias.
‘Língua em Movimento’
Apesar da resistência, são muitos os que asseguram que as limitações e proibições não poderão impedir a imposição de uma linguagem inclusiva.
Os próprios editores do dicionário francês explicaram, diante da polêmica, que estavam simplesmente refletindo um fenômeno que já existe.
“A missão do Le Robert é observar e relatar a evolução de uma língua francesa diversificada e comovente”, explicaram em um comunicado.
A própria RAE reconheceu que, em última instância, a linguagem que se impõe é a que se fala no cotidiano e não a que ditam.
“É oportuno lembrar que as mudanças gramaticais ou lexicais que triunfaram na história da nossa língua não foram definidas por instâncias superiores, mas surgiram espontaneamente entre os falantes”, destacou a RAE.
“São estes que promovem e adotam inovações linguísticas que só algumas vezes alcançam sucesso e são difundidas.”
Durante recente visita ao Chile, o diretor da RAE, Santiago Muñoz Machado, reforçou essa ideia afirmando que “são os cidadãos, usando o idioma, que estabelecem as regras”.
Em entrevista ao jornal chileno “El Tiempo”, Machado também admitiu que “a RAE sempre está um pouco atrás dos cidadãos”.
A renomada escritora argentina Claudia Piñeiro, que, em 2019, foi uma das primeiras personalidades literárias a defender o uso da linguagem neutra durante um discurso que proferiu no Congresso Internacional da Língua Espanhola, considerou que tentar regulamentá-la é inútil.
“Querer proibir uma linguagem é como tentar pegar água com um coador”, disse ela após o anúncio do governo de Buenos Aires.
Piñeiro reconheceu em seu discurso que só “no futuro” saberemos se a linguagem neutra acabará sendo “adotada pela língua espanhola”.
Ela disse também que as proibições certamente terão o efeito contrário ao desejado e acabarão fazendo com que mais jovens queiram usá-la.