Dona Álvara tem 87 anos e é uma mulher preta que fez e faz história na liderança de sua comunidade. Já Andreza planta e colhe no território em que vive, fazendo da agricultura uma fonte de renda e também uma atividade imersa de identidade para ela e outras mulheres. Hermínia encontrou na dança folclórica uma ligação ainda mais pessoal com a cultura quilombola. Todas essas mulheres são assistidas pela Defensoria Pública do Estado do Tocantins (DPE-TO) em suas lutas pela garantia de direitos e representam a potência da cultura e saberes ancestrais.
Álvara Fernandes Rodrigues, a dona Álvara, é a matriarca da comunidade quilombola Barra do Aroeira, localizada no município de Santa Tereza do Tocantins – interior do Estado. Uma mulher com trajetória de lutas por direitos coletivos e resistência, mas também com uma vida plena de autorreconhecimento e identidade: “Com muito orgulho, sou aroeira, quilombola, parteira, benzedeira e raizera”, é como se apresenta.
Apesar do sorriso fácil e largo no rosto, dona Álvara tem uma vida incansável na busca pela garantia de direitos básicos para sua comunidade, que apesar de estar localizada perto da Capital [Palmas], ainda carece de serviços básicos. Nesse sentido, o grupo precisa de constante assistência jurídica integral e gratuita, o que é oferecido e garantido pela Defensoria Pública tanto por meio de atendimentos individuais, quanto por atendimentos coletivos.
Protagonista de si e da luta pelos seus, dona Álvara é referência na comunidade; sendo, também, a voz que querem ouvir aqueles que buscam um conselho sábio. Talvez, não por acaso, ela seja ainda mais verdadeiramente “Álvara”, nome cujo significado poeticamente diz: “a guardiã de todos”.
Mãe biológica de dez filhos, dona Álvara também viu e viveu, como parteira, o nascimento de centenas de crianças, reconhecendo essas vidas quilombolas como seus “filhos de mãos”. Neta do fundador da Comunidade, o senhor Félix Rodrigues, ela sabe que a partida desse mundo, quando for a hora, será o fechamento de um ciclo vivido onde sempre quis estar: “Aqui eu nasci, cresci, criei minha família e quero viver pra sempre”.
Mulheres líderes
Outras mulheres quilombolas também cumprem papéis fundamentais no processo político da comunidade, atuando pela união e organização de todos como grupo social. Elas são agentes transformadoras que assumem toda a diretoria da Associação Comunitária dos Quilombos de Barra do Aroeira, por exemplo. Com isso, têm forte envolvimento com as questões comunitárias e coletivas, conciliando cuidados com suas famílias e afazeres domésticos, funções que há gerações são destinadas quase que exclusivamente às mulheres.
Uma dessas líderes é Maria de Fátima Rodrigues, conhecida como Andreza [foto abaixo]. Ela explica que diferentemente de outras comunidades do entorno do Jalapão, que possuem campos de capim dourado para artesanato, a principal fonte de geração de renda na Barra de Aroeira é a agricultura, onde as mulheres também trabalham no cultivo de hortaliças, grãos e legumes. “A gente planta muito e o que a gente colhe é transformado em alimentos para a geração de renda, como pimentas, licores, mel, fava, feijão, óleo de coco, mamona, buriti e outros”, declara. Ela também integra, por meio do canto, momentos culturais na comunidade.
Já Hermínia Rodrigues [foto abaixo] é líder do grupo folclórico da Dança do Lenço e assim como dona Álvara e Andreza, nasceu e criou-se na comunidade quilombola Barra do Aroeira. Além de liderar o grupo folclórico, Hermínia é artesã, raizera e benzedeira: “Eu faço muito garrafada, mas também faço talo de buriti, balaio e tapiti”, conta.
Ela conta que já sofreu ameaças em seu território, o que para a Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (Conaq) no Tocantins, lamentavelmente não é um caso isolado.
Realidade retratada
De acordo com a presidente da Conaq-TO, Cida Ribeiro [foto abaixo], em todas os povoados, algumas características parecem se repetir: “As comunidades travam, diariamente, o embate pelo direito à terra e ao território, bem como por políticas públicas específicas, das quais foram sistematicamente privadas devido ao racismo do Estado. Enquanto mulheres, negras e quilombolas, seguimos na luta diária pela demarcação dos territórios e soberania do nosso povo, seja no enfrentamento ao racismo institucional, ambiental, social, cultural e principalmente na vigília constante para que as leis sejam cumpridas”, diz Cida.
Sobre as funções de liderança e também domésticas, algo muito comum entre matriarcas e líderes de comunidades quilombolas, Cida avalia ser este um retrato social de mulheres no país, especialmente as negras: “Seja como mãe ou não, responsável pelo lar, da roça, dos animais, quebrando coco, torrando farinha ou fazendo carvão, na labuta diária dos afazeres, no cuidar da família. Enfim, acumulando funções na tarefa diária que é ser mulher”, afirma.
Segundo Cida, ainda não há uma mensuração sobre a quantidade de mulheres quilombolas no Tocantins, porém, é sabido que a maioria das comunidades locais são lideradas por mulheres.
Lutar, acolher, defender
A Defensora Pública reforça que o Estatuto da Igualdade racial (Lei 12.288/2010) reafirmou o direito quilombola de acesso à terra, bem como a necessidade de desenvolver políticas públicas especiais voltadas para o desenvolvimento sustentável, respeitando as tradições de proteção ambiental das comunidades.
É nesta garantia que a Instituição tem se dedicado, o que foi ampliado desde a implantação do Núcleo Especializado de Questões Étnicas e Combate ao Racismo (Nucora), em 2021, e em atuação conjunta com o Núcleo de Defensoria Agrária (DPagra).
A DPE-TO se faz presente nas comunidades quilombolas por meio de relevantes programas, entre eles, o Defensoria Itinerante, que leva o atendimento jurídico integral, gratuito e de qualidade a comunidades de difícil acesso ou em casos em que o atendimento remoto não é tão viável para ver e sentir de perto as necessidades locais.
Julho das Pretas
Dona Alvará, Andreza, Hermínia e Cida – das comunidades quilombolas do Tocantins, assim como Dandara, Lélia Gonzalez e Tereza de Banguela – nos registros históricos nacionais – são mulheres quilombolas reconhecidas pela luta da garantia da sobrevivência de todo um povo enquanto raça, saber ancestral, cultura e direito à terra.
Neste Julho das Pretas, a Defensoria Pública concede justo espaço e reconhecimento a essas mulheres que fazem história na liderança de suas comunidades. Mulheres que representam outras mulheres quilombolas com inspiração de força, resistência e amor pela vida e pelas suas ancestralidades.