Nilza Verônica Amaral
– Eu só tive um namorado…
Virei-me e fitei aquela mulher marcada pelas rugas do tempo. Falara muito baixo, quase ensimesmada; achei que falara com suas lembranças. Mas mesmo que não tivéssemos intimidade, baixei minha prancheta de campo e dei-lhe minha atenção.
Convidou-me para tomar um café e voltamos do roçado caminhando em silêncio até sua casa, moradia simples de assentamento rural na Amazônia, onde eu levantava dados de campo para meu mestrado. Chegamos e, enquanto aguardava o café, observei os pertences daquele cômodo: uma mesa com meia dúzia de banquinhos gastos pelo tempo e enegrecidos pela fuligem expelida pelo fogão à lenha; num canto, sobre uma mesinha, um filtro de barro, umas poucas vasilhas e uns copos de alumínio caprichosamente areados.
Mexia-se devagarzinho talvez para escolher as palavras certas que reiniciariam a conversa. Coou o café e me serviu, junto com um pedaço de macaxeira recém-cozida.
– Você disse que só teve um namorado na vida?
Olhou pra fora da casa com o olhar perdido, decerto buscando clarear as ideias.
– Quis dizer que só tive um amor de verdade, aquele que dói no peito. Mas tive que casar com outro.
Supondo que seria uma história de amor, redobrei minha atenção porque histórias de amor precisam ser ouvidas com o coração.
– Estudei pra ser professora e ele, pra ser agricultor; mas não era dotô, não. Conheci ele quando fui ajudar meus irmãos na limpeza da roça. Ele trabalhava lá, suado, bonito, cabelo preso debaixo do chapéu; me olhava de longe. Era homem da cidade e eu não olhava, não. Dias depois, quando acabou o trabalho, nós já tava namorando. A gente se via escondido, sempre espreitava um local diferente. Interior sabe como é… não tem nada pra gente fazer. Ele me queria e eu também queria ele. Então deitamos umas vezes e eu emprenhei; meus irmãos descobriram, me bateram porque eu era uma desavergonhada e me expulsaram de casa. Uma senhora, que me conhecia, me levou pra casa dela, na cidade, e cuidou de mim. Meus irmãos queriam matar ele, mas ele fugiu. Nunca mais nos vimos.
Seguiu com a voz embargada.
– O filho dela morava nesse assentamento e queria que eu viesse pra cá, com ele. Meus irmãos me obrigaram a casar e aceitei. Se não fosse assim acho que morreria de fome; engravidei mais umas cinco vezes. Meus filhos cresceram, foram estudar na cidade e eu fiquei aqui, com meu marido. Trabalhamos a semana toda, na roça; no domingo vamos à missa, na cidade. Num domingo, vi ele de longe; ainda usava o cabelo preso debaixo do chapéu e continuava bonito. Senti uma dor no peito, quase morri. Voltei pra casa e chorei, mas a dor nunca passou.
Com uma voz bem baixinha, continuou.
– Sabe, não casei por amor, casei por precisão; não reclamo da vida, mas queria ter casado com ele, ser professora, ensinar meus alunos a ler e escrever. Não pude escolher. Ler é a única coisa que faço à noite, depois que jantamos e arrumo a cozinha. Minha filha compra pra mim, na cidade, livros usados e divido eles com a comadre, que também gosta de ler. Meu marido não gosta que eu leia, diz que livro só ensina o que não presta. Mas leio mesmo assim e ele finge que não sabe!
Nosso café esfriara; dei um último gole, ela colocou a louça suja no jirau e saímos. Retornamos em silêncio. No fim da tarde, enquanto voltava pra casa dirigindo pelos ramais esburacados, matutava no que ouvira… Nos meses seguintes continuei entrevistando outras famílias, mas procurava encontrá-la sempre que possível, porque ao seu café quentinho ajuntavam-se muitas histórias. Entretanto nunca mais, a partir daquele dia, ouvi histórias de amor. Presumo que, além de mim, somente a comadre ouviu aquele relato; porque naquela lonjura toda, ter uma amiga confidente e fiel é igual a ter um paneiro cheio da melhor farinha.
Aquela mulher me ensinou que o amor é universal e cabe em qualquer coração, em qualquer lugar e em qualquer tempo. Lembro-me sempre dela, do café que nos uniu e do amor que guardara na alma por todos esses anos.
*Nilza Verônica Amaral é formada em Arquitetura e Urbanismo. Tem especialização em Planejamento Ambiental e Mestrado em Ciências do Ambiente e Sustentabilidade na Amazônia, pela Universidade Federal do Amazonas. Mantém como hobby escrever crônicas e poesias, além de fotografar.