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O Brasil tem milhares de presos trabalhando de graça para empresas e órgãos governamentais, que, por fora da lei, se beneficiam desta mão de obra vulnerável para baratear seus custos. Outras companhias pagam aos detentos um valor muito abaixo do que prevê a legislação. É um lucrativo e obscuro negócio que ocorre atrás das grades das penitenciárias do país que tem a terceira maior população carcerária do mundo, com 726.712 detentos. As companhias dos setores público e privado firmam acordos com os Estados para explorar a mão de obra dos internos: o regime de trabalho dos presos não é regulado pela Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), e sim pela Lei de Execuções Penais, que prevê uma remuneração de ao menos três quartos do salário mínimo – ou seja, um piso de cerca de 702 reais. Mas para muitos encarcerados que trabalham, este valor, ainda que baixo, é um sonho. Outros não veem a cor do dinheiro. Dos 95.919 detentos que são empregados dentro do sistema penitenciário, 33% (ou 31.653 pessoas) não recebem nada, trabalham de graça.

Além dos que trabalham sem remuneração dentro dos presídios, outros 39.326 detentos que estão empregados recebem valores abaixo dos 702 reais exigidos pela LEP. No total, 75% dos internos que exercem alguma atividade no cárcere recebem menos do que o exigido por lei. Os dados constam em um relatório do Ministério da Justiça intitulado Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias, publicado no início de dezembro e feito com dados de 2016. Todos os presos que trabalham contam com o benefício da remição de pena por dias de atividade – cada três dias de trabalho abatem um dia no cumprimento da sentença.

O artigo 29 da LEP diz que “o trabalho do preso será remunerado, mediante prévia tabela, não podendo ser inferior a três quartos do salário mínimo”. Além disso, o empregador não precisa arcar com nenhum encargo trabalhista ao utilizar o serviços de um preso. Mas na prática, além do fato de existirem poucas oportunidades de trabalho no cárcere (apenas 15% dos detentos brasileiros trabalham), quando estas vagas existem, são predominantemente empregos remunerados de forma irregular até para os padrões dos anos de chumbo. Isso porque a LEP foi assinada em julho de 1984 pelo general João Figueiredo, no penúltimo ano de ditadura militar no país. Apesar de ser um direito, o trabalho no cárcere – visto como uma das principais ferramentas de ressocialização do preso – acaba sendo mais uma forma de exploração.

Em São Paulo, Estado com a maior população carcerária do país (240.061 presos), a Secretaria de Administração Penitenciária (SAP) mantêm contratos com 631 empresas privadas e 55 órgãos públicos que utilizam mão de obra dos internos, segundo dados oficiais. No site da pasta, o programa Alocação de Mão de Obra é descrito como uma oportunidade para que “a empresa possa desenvolver seu plano de responsabilidade social (…) sem vínculo empregatício com o trabalhador que está em cumprimento de sua pena e, portanto, sem os encargos sociais”. No Estado, 27% dos detentos que trabalham não recebem remuneração alguma, e 53% recebem menos do que o valor estipulado em lei. Além disso, uma portaria da SAP estipula que quanto mais postos de trabalho uma empresa ofereça dentro do presídio, menor é a taxa administrativa paga para a Secretaria, em um negócio lucrativo para todos – menos para o detento.

Questionada pela reportagem, a SAP de São Paulo afirmou que os presos prestam serviços nas áreas de “construção civil, têxtil, artesanato, fabricação de bens duráveis e não duráveis, alimentício e prestação de serviço”. Indagada, a pasta não comentou o descumprimento da LEP no Estado, tampouco forneceu a lista das empresas que utilizam mão de obra de detentos, e respondeu apenas que “discorda da metodologia de coleta de dados utilizada pelo Infopen na ocasião”.

Parte dos contratos feitos entre detentos e empresas no Estado de São Paulo passam pela Fundação Professor Doutor Manoel Pedro Pimentel, a Funap, ligada à SAP. A entidade faz uma triagem das companhias, para evitar, por exemplo, que elas despeçam funcionários que estão em liberdade para contratar detentos, além de garantir o pagamento previsto em lei. “Para o setor privado é interessante investir neste tipo de mão de obra, uma vez que economizam todos os encargos trabalhistas”, afirma Lucia Casali, diretora da Funap. Mas nem tudo é lucro para a empresa que opta por trabalhar com presos. “Dificilmente eles conseguem que o interno trabalhe oito horas por dia, tendo em vista que é preciso que ele saia da cela, vá até a oficina, retorne no almoço horário de almoço… Tudo isso leva tempo”, afirma Casali.

Presos costuram uniforme escolar em Minas Gerais.
Presos costuram uniforme escolar em Minas Gerais. DIVULGAÇÃO

Em algumas ocasiões, a Fundação chegou a acionar a Justiça para garantir que empresas conveniadas fizessem o pagamento correto do salário dos presos. A diretora da Funap afirma que todos os contratos irregulares apontados no estudo são feitos por fora da Fundação. “O ideal seria que os presos ganhassem um salário mínimo completo. Mas se todos ganhassem ao menos três quartos do mínimo já seria ótimo”, diz. A expectativa dela é que no máximo até 2019 a situação da exploração irregular de detentos seja sanado no Estado.

A reportagem tentou contato com duas empresas que exploram o trabalho dos presos paulistas sem sucesso.

No Distrito Federal a porcentagem de presos que trabalham de graça é de 100%. Procurada para comentar o descumprimento da lei, a Secretaria de Segurança Pública e Paz Social do DF informou que ” o levantamento Nacional de Informações Penitenciárias, de 2016, está desatualizado no que se refere ao Distrito Federal”. Segundo a nota enviada, atualmente cinco internos e 132 internas do sistema prisional que cumprem penas em regime fechado exercem serviços remunerados”.

“O ideal seria que os presos ganhassem um salário mínimo completo. Mas se todos ganhassem ao menos três quartos do mínimo já seria ótimo”

Procurado, o Ministério da Justiça informou que “recentemente lançou o Selo Nacional de Responsabilidade Social pelo Trabalho no Sistema Prisional”, e que “as empresas, órgãos públicos e entidades de economia solidária terão até o dia 31 de janeiro para se inscreverem neste primeiro ciclo de concessão do Selo”. Já o Ministério Público Federal afirmou que tem atuação “pontual” no sistema penitenciário estadual, e suas ações são voltadas para o sistema federal. O assessor do procurador-geral de Justiça de São Paulo Paulo José de Palma informou que “o Ministério Público Estadual irá apurar a possível irregularidade em contratos firmados com os detentos”.

“Lógica predatória”

Instituto Ethos, que trabalha com responsabilidade social para empresas, afirmou em relatório que “ainda que existam experiências louváveis [com contratação de presos], a lógica que as preside é essencialmente predatória (…) pois objetivam oferecer pequenos favores aos presos em troca de benefícios maiores para a empresa”. Mais à frente o documento afirma que o barateamento da produção para as empresas ao não remunerar presos de forma justa é tão grande que a Organização Mundial do Comércio “possui rígidas recomendações quanto à prática de dumping por meio da utilização de mão de obra de presidiários para baratear os custos de produção, considerada concorrência desleal”.

Do dinheiro recebido pelos presos que trabalham, uma parte é rateada entre os que executam funções internas e não remuneradas no presídio, como limpeza e manutenção. Parte fica com o Estado e uma parcela maior (cerca de 80%) é destinada à assistência da família. Um pequeno percentual é depositado em banco e pode ser sacado pelo detento após o cumprimento da pena.

Para Henrique Apolinário, assessor da Conectas, entidade do terceiro setor que trabalha com Direitos Humanos, os órgãos que deveriam fiscalizar a situação trabalhista dos detentos não o fazem. “O preso não tem acesso à Justiça mais básica, muito menos quando envolve questões trabalhistas. É uma situação muito vulnerável”, afirma. Segundo Apolinário, a exploração da mão de obra do preso “é um negócio lucrativo para as empresas, tanto é que o valor mínimo estabelecido de três quartos do salário base já foi estipulado para incentivar o setor privado a utilizar essa forma de trabalho”. Ele destaca ainda que o abuso trabalhista sofrido pelo preso “anda de mãos dadas com a privatização do sistema carcerário”. Como exemplo, o assessor cita Minas Gerais, onde as parcerias público-privadas para construção e administração de penitenciárias mais avançaram no país. O Estado tem a maior porcentagem de sua população encarcerada trabalhando: são 18.889 detentos empregados, ou 30% do total. No entanto, 54% destes presos mineiros não recebem nada, segundo o relatório do Ministério da Justiça.

O assessor da Conectas destaca ainda que dentro do universo de 15% de presos que trabalham, muitos não têm acesso a uma jornada completa, “o que dificulta a remição de pena”. “Em muitos casos o que encontramos nos presídios são trabalhos eventuais, uma ou duas vezes por semana, insuficientes para que ele consiga abater de forma significativa o tempo da pena”, diz.

A baixa remuneração dos detentos chamou a atenção do então procurador-geral da República Rodrigo Janot, que chegou dizer que o valor era um pagamento “extorsivo” para o preso. Em 2015 a PGR entrou com um pedido de liminar no Supremo Tribunal Federal para que fosse feito um reajuste no valor pago aos presos, para que a remuneração base fosse de um salário mínimo. “O trabalho recompensado de forma injusta é substancialmente inútil para os efeitos de qualquer suposto ‘tratamento’ carcerário”, escreveu Janot. O pedido foi negado pelo ministro Luiz Fux, que no entanto destacou em seu parecer a “relevância do tema”. No Senado foi aprovado no final de outubro deste ano um projeto de lei que reforma a Lei de Execução Penal, e, entre outras medidas, atualiza a remuneração dos presos para um salário mínimo. A legislação ainda precisa ser aprovada no plenário da Casa.

Por Gil Alessi

Fonte: El País