Febre, dor de cabeça e no corpo, cansaço, gânglios inchados. Desde o fim de janeiro, unidades de saúde do município de Santa Maria, no Rio Grande do Sul, começaram a receber cada vez mais pacientes com esses sintomas. A causa, até então desconhecida, foi confirmada nessa quinta-feira pelas secretarias de saúde municipal e estadual: surto de toxoplasmose. Por enquanto, há 59 casos suspeitos e 14 confirmados.
“O número total de casos poderá ser maior (que os 59 suspeitos). A gente não sabe em que ponto da curva a doença está”, ou seja, se ascendente, estável ou descendente, afirma Marilina Bercini, diretora do Centro Estadual da Vigilância em Saúde da Secretaria de Saúde do Rio Grande do Sul.
A toxoplasmose é provocada por um parasita, o toxoplasma, e é transmitida pela ingestão de água ou alimentos contaminados ou pela placenta da mãe para o bebê.
É uma doença extremamente comum. No Sul do país, estima-se que seis em cada dez pessoas já tenham contraído toxoplasmose em algum momento da vida, segundo a médica infectologista gaúcha Lessandra Michelim, da Sociedade Brasileira de Infectologia.
“É muito complicado o controle do toxoplasma, porque ele está espalhado pelo ambiente. Não é por falta de cuidado e higiene. Nem é algo exclusivo nosso. A França, por exemplo, tem incidência maior que a do Brasil”, afirma Michelim.
Você, inclusive, já pode ter sido contaminado pelo toxoplasma e não fazer nem ideia disso. Afinal, a grande parte dos casos não apresenta sintomas e não gera complicações.
Porém, não é uma doença banal. Oferece grande risco no caso de gestantes que contraiam a toxoplasmose durante a gravidez (ter contraído antes não gera problema nenhum), porque pode comprometer o desenvolvimento do feto. Além disso, também é perigosa para pessoas que estejam com a resistência baixa – imunodeprimidas, no linguajar médico.
A maior parte dos casos de toxoplasmose são isolados. Já os surtos, que acometem um número maior de pessoas em um determinado local e período, são menos comuns. Nesses casos, a causa envolve algum tipo de contaminação ambiental pelo parasita – por exemplo, uma fonte de água, um criadouro de animais, uma área agrícola ou mercado de alimentos.
No caso de Santa Maria, ainda não se sabe qual é a origem da contaminação. Identificá-la é justamente a prioridade das autoridades de saúde neste momento. Afinal, como os casos não pararam de aparecer, é possível que a população continue exposta.
Como a toxoplasmose é transmitida?
O toxoplasma é um parasita liberado no ambiente pelas fezes de felinos contaminados – principalmente gatos, os felinos mais comuns.
Nessa fase, o toxoplasma está em um estágio de vida chamado de oocisto, presente nas fezes dos gatos por até duas semanas após a infecção. Depois de despejados no ambiente, os ooscistos levam alguns dias para se tornarem infecciosos. E são extremamente resistentes, podendo se manter infectantes por até um ano e meio.
A partir daí, água, solo, plantas e outros animais de consumo humano podem se contaminar. E, na sequência, contaminar pessoas.
Além disso, animais como ratos e pássaros podem adquirir o parasita ao beber água, comer plantas ou entrar em contato com solo contendo esses oocistos – mais gatos podem ser infectados da mesma forma, bem como ao se alimentarem desses bichos, levando a novas liberações do toxoplasma no ambiente.
Os felinos são os únicos hospedeiros definitivos, ou seja, apenas no intestino deles é que o parasita consegue realizar seu processo de reprodução. Outros animais, como os seres humanos, são hospedeiros intermediários – podem ser infectados, mas não liberam oocistos em suas fezes.
Mas quando contaminados, eles passam a abrigar cistos do parasita, que podem ficar presentes em seu corpo até o fim da vida. Caso uma pessoa se alimente da carne mal passada de um boi que teve toxoplasmose, por exemplo, ela pode ingerir esses cistos e, assim, se infectar.
Não há vacina para a doença.
É preciso evitar o contato com gatos?
“É importante salientar que o toxoplasma é adquirido pela alimentação. Os gatos não são um vetor (não transmitem a doença). Eles podem fazer parte do ciclo do parasita e eliminá-lo nas suas fezes. Mas o gato em si, o contato com ele e com o seu pelo não transmitem a doença”, explica a infectologista Michelim.
“Quando tem surto, muita gente acaba matando gato ou até se desfazendo do animal. É desinformação.”
A Prefeitura de Santa Maria acrescenta que os gatos “apresentam pouca importância epidemiológica em surtos”. Isso porque a origem deles é alguma contaminação ambiental. Ou seja, o importante para evitar a propagação da doença é encontrar e descontaminar essa fonte, não evitar contato com gatos.
Porém, para evitar os casos isolados (quando uma pessoa se contamina sem relação com um surto), que são a maioria, é preciso manter total higiene ao lidar com as fezes dos gatos, principalmente no caso de grávidas.
O Centers for Disease Control and Prevention (CDC), agência do Departamento de Saúde dos Estados Unidos, diz que grávidas não devem abrir mão de seus gatos, mas recomenda que evitem limpar a caixa de areia deles. Se isso não for possível, a dica é usar luvas descartáveis e lavar bem as mãos depois. A limpeza deve ser diária.
A maioria dos felinos se torna imune à doença após uma primeira contaminação, mas é muito difícil saber quando ela ocorre – a exemplo dos humanos, eles raramente apresentam sintomas.
O que mais deve ser feito para se prevenir?
“Essa é a pergunta mais difícil. A toxoplasmose é endêmica. Por mais que tenhamos todos os cuidados necessários, a gente nunca sabe qual é a real procedência de vários alimentos e da água que consumimos. O que podemos fazer é tentar consumir alimentos com procedência, que tenham uma fiscalização”, fala Michelim.
Como o risco maior é para gestantes, a recomendação é que elas sim façam um controle rigoroso da alimentação. “A toxoplasmose no começo da gravidez pode causar aborto. No meio, pode gerar sequelas permanentes no bebê, como retardo mental, alteração ocular e no desenvolvimento psicomotor”, explica a infectologista.
Segundo ela, gestantes que já tiveram toxoplasmose antes da gravidez não estão totalmente livres do risco de pegar a doença de novo, porque há cepas diferentes. Por isso, todas devem se cuidar.
Já no caso de pessoas com imunidade baixa, a toxoplasmose pode afetar o sistema nervoso, coração, pulmão, fígado e provocar problemas nos olhos. O tratamento costuma ser feito com antiparasitários ou, dependendo do caso, antibióticos. As gestantes com a doença devem fazer um acompanhamento específico.
O que se sabe sobre o surto de toxoplasmose em Santa Maria?
A investigação dos casos em Santa Maria começou em 12 de abril. As suspeitas iniciais eram dengue, chikungunya e toxoplasmose.
Na quinta-feira, o surto de toxoplasmose foi comunicado oficialmente.
O primeiro paciente identificado começou a apresentar sintomas em 20 de fevereiro. Porém, estão sendo considerados casos suspeitos todos aqueles que tiveram os sintomas a partir de 20 de janeiro.
Para ajudar na identificação, as autoridades estão fazendo uma varredura nos prontuários médicos de todos os pacientes atendidos na rede de saúde desde o início do ano.
As gestantes identificadas com toxoplasmose estão sendo encaminhadas para o pré-natal de alto risco do Hospital Universitário de Santa Maria.
“A fonte (de contaminação) está sendo procurada, mas não é fácil fazer essa investigação. O surto tem origem em uma contaminação ambiental, um protozoário que vive no ambiente. Não é transmitido por mosquito”, afirma Marilina Bercini, do centro de vigilância estadual.
Quais são as principais recomendações?
A Prefeitura de Santa Maria emitiu as seguintes recomendações para a população da cidade, que tem 260 mil habitantes:
– Evitar consumo de água e alimentos de origem desconhecida;
– Comer somente carnes bem cozidas ou bem passadas (não se alimentar de carnes cruas, mal passada ou embutidos frescos);
– Beber somente água tratada, filtrada ou fervida;
– Beber somente leite pasteurizado ou fervido;
– Lavar bem as mãos após manuseio de carnes cruas;
– Lavar bem frutas, verduras e legumes crus antes do consumo;
– Lavar bem as mãos antes das refeições;
– Fezes de gatos devem ser recolhidas com luvas ou sacolas plásticas, e devem ser descartadas em sacos plásticos utilizados para o lixo doméstico e disponibilizadas para o sistema público de coleta. Gatos jovens e doentes podem ficar com fezes contaminadas por cerca de 15 dias. Gatos adultos geralmente são imunes e raramente transmitem a doença.
Fonte: BBC