Se tiver mel, chocolate ou leite misturados a lúpulo, cevada e malte, é cerveja? A partir de agora, sim. A Presidência da República publicou nesta terça-feira (09/07) um decreto que estabelece regras para a produção de bebidas no Brasil, substituindo trechos do anterior, que estava há dez anos em vigor.
Entre as principais mudanças está a permissão para adicionar à cerveja ingredientes de origem animal, vegetal e outros aditivos, a serem regulamentados. A norma também atualiza regras para padronização, classificação, registro, inspeção, produção e fiscalização de bebidas no país.
Não que antes do decreto não se pudesse encontrar à venda no Brasil garrafas de cerveja feitas até com bacon, por exemplo. Mas antes elas não podiam ser consideradas cervejas e deveriam ter a inscrição “bebida alcoólica mista” no rótulo, para efeitos legais e de fiscalização.
O Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa) afirma que diferente do que foi interpretado por alguns setores após a publicação do decreto, ainda está mantido o limite de 45% de adição de cereais não maltados à cerveja, como arroz e milho. Isso porque, conforme a pasta, a regra que define esse teto é a instrução normativa 54/2001, que segue em vigor.
O ministério esclarece ainda que a intenção do novo decreto é atualizar as regras sobre a produção de cervejas, pois havia defasagem em relação à tecnologia empregada em outros países e certa sobreposição de exigências do decreto antigo sobre a normativa do ministério.
Segundo o novo decreto, cerveja é “a bebida resultante da fermentação, a partir da levedura cervejeira, do mosto de cevada malteada ou de extrato de malte, submetido previamente a um processo de cocção adicionado de lúpulo ou extrato de lúpulo, hipótese em que uma parte da cevada malteada ou do extrato de malte poderá ser substituída parcialmente por adjunto cervejeiro”. Continuará cabendo ao Ministério da Agricultura definir tecnicamente os padrões permitidos para composição dos ingredientes.
Produtores de cerveja comemoram a flexibilização das regras. O presidente da Associação Brasileira de Cervejas Artesanais (Abracerva), Carlo Lapolli, afirma que a mudança é bem-vinda e atende a reivindicações antigas do setor.
Conforme Lapolli, as negociações para atualizar a legislação começaram em 2013 com o Mapa, principalmente por parte das cervejarias artesanais, a fim de liberar inovações, como cervejas com mel, envelhecidas em barris de madeira ou ácidas.
Na época, havia cerca de 200 cervejarias artesanais no país, número que chega a 1 mil atualmente. O ministério reuniu representantes das empresas e depois liberou uma consulta pública para que o setor sugerisse mudanças.
“O mercado da cerveja é muito dinâmico. Existem hoje cervejarias muito pequenas, e o próprio Mapa não estava preparado para regulamentar isso tudo da melhor forma. O decreto vem ajudar”, argumenta o presidente da Abracerva.
Mudança abre caminho para a criatividade
A mudança envolve também as rotulagens. Segundo Lapolli, a norma até então vigente gerava confusão na classificação dos tipos de cerveja.
“Vai ficar mais amigável. Por exemplo, na norma anterior, uma bebida com um amarelo-dourado, profundo, quase marrom, já era considerada uma cerveja escura. Aí o consumidor comprava achando que era uma cerveja preta, mas é diferente. Isso tudo vai ser alterado agora para realmente deixar as coisas fazendo mais sentido para o consumidor”, afirma.
Na prática, a aposta do setor é que a mudança na legislação permita mais liberdade ao desenvolvimento de novos produtos, sobretudo os artesanais.
“A mudança deixará, principalmente, a criatividade aparecer. Claro, dentro de um limite sanitário. Mas o Brasil tem que aproveitar os biomas nacionais. A gente vai se destacar se utilizar frutas brasileiras, madeiras brasileiras, inclusive leveduras nacionais. A gente já tem alguns laboratórios que captam leveduras selvagens brasileiras para usar na cerveja. Para isso também precisava dessa regulamentação”, defende Lapolli.
Lei da pureza na Alemanha
Em 1516, o duque Guilherme 4º, da Baviera, publicou um regulamento conhecido como Reinheitsgebot, a lei de pureza da cerveja alemã. Em vigor até hoje no país tradicionalmente conhecido como amante e consumidor ávido da bebida, a lei estabeleceu que esta deveria ser produzida apenas com água, malte de cevada e lúpulo. Mais tarde, quando os conhecimentos sobre a levedura foram aprimorados, ela também passou a ser considerada parte da fórmula.
Conforme a Deutscher Brauer-Bund (Associação Alemã de Cervejeiros), na época da criação da norma, se misturavam ingredientes duvidosos à bebida, como serragem, raízes, fuligem e até mesmo piche. O que importava era ter um aspecto convincente, o que intoxicou muita gente.
Na prática, a lei serviu também como uma precursora do direito do consumidor e eliminou cervejeiros amadores do mercado, além de impor limites a preços abusivos e evitar que cereais úteis para alimentar a população fossem usados para compor as bebidas.
Até hoje a Baviera segue muito rígida na exigência dos ingredientes previsto na lei da pureza, o que não quer dizer que limite as potencialidades dos produtos. Conforme a associação dos cervejeiros, há mais de 250 variações do lúpulo, 40 de malte de cevada e 200 de leveduras. Até a água utilizada pode conceber características únicas às bebidas.
Nos demais estados alemães, as regras são mais liberais. “Com exceção da Baviera, cervejarias dos outros 15 estados alemães podem refinar a cerveja com especiarias, frutas, mel, cacau, chocolate”, explica à DW Brasil o diretor da associação, Holger Eichele.
São os casos previstos na lei como cervejas especiais (besondere Biere), às quais é possível adicionar ingredientes como casca de laranja e semente de coentro. Mas para por aí: substitutos de malte ou lúpulo também não são permitidos para as especiais.
A mesma exigência de pureza, no entanto, não recai sobre produtos que serão exportados pela Alemanha, desde que liberados por autoridades estaduais. Além disso, qualquer pessoa que produza até 200 litros de cerveja por ano em casa não precisa aderir à lei.
Fonte: DW