Por Eduardo Simões, Professor doutor em Filosofia
O Brasil é o retrato da contradição. Em meio ao registro dos avanços do governo Lula nas pautas econômica e social, emergem pesquisas de opinião que revelam a crescente desaprovação do governo .
É sabida que essa desaprovação tem a ver com o cenário de polarização política onde frentes conservadoras e reacionárias respondem fortemente a um governo que se propõe progressista. A cada fala de improviso do presidente que envolve temas de interesses de religiosos conservadores (Deus, pátria e família), a cada projeto vetado que afeta as agendas prioritárias da segurança pública (saidinha de presídios), a cada embate que envolve as pautas do agronegócio (movimentações do MST, marco temporal, reforma agrária) e a cada quebra de braço contra o mercado financeiro e o setor produtivo (distribuição de dividendos da Petrobrás, governo vs. Banco Central, desoneração de folha de pagamento), não se há de esperar outra reação que não a da reprovação das suas ações. Contudo, isso é normal! O desgaste que vem daí, apesar de não desejável pelo governo, é permissível. Foi justamente contra estas frentes que Lula ganhou as eleições em 2022. O fogo que vem daí não é fogo amigo! Qualquer atitude advinda desse público tratar-se-á de ação de alguém que reafirmará enfaticamente: “esse governo não me representa!”.
A coisa muda de figura, entretanto, quando o desgaste advém das forças aliadas; daqueles que supostamente ajudaram, com o apoio à sua eleição, superar o estado de coisas que o antecedia: supressão dos direitos humanos fundamentais, exclusão social, destruição da economia, desmantelamento das políticas públicas sociais e ambientais, negacionismo científico, ataques sucessivos contra a imprensa, reforço dos comportamentos misóginos, homofóbicos e racistas, catástrofe na condução da pandemia do Covid 19, saúde e educação aos frangalhos, destruição das Instituições Federais de Ensino, Brasil como pária internacional em diversas pautas, etc. Não são poucos os exemplos a serem enumerados dos efeitos catastróficos do governo que precedeu ao governo Lula. Mas, mesmo que o cenário aponte para a melhoria de toda essa realidade, ainda assim, isso não dirime a possibilidade de que, de alguma parte do campo aliado, saia um “fogo amigo”.
Para citar um exemplo do que se afirma, tomemos a atual greve deflagrada, por atuação dos sindicatos de classes, no âmbito das Instituições Federais de Ensino Superior. Depois de seis anos de quase total silêncio dos sindicatos que representam categoriasdos trabalhadores da educação federal, tendo tido suas atuações,neste período, resumidas praticamente à algumas “notas de repúdio” e “frases de efeito” (“Fora Temer!”), eis que os companheiros dos sindicatos decidiram aflorar a sua “consciência de classe” – tema tão central no materialismo de Karl Marx. Interessante notar que era exatamente o período anterior (de Temer e Bolsonaro) aquele que mais precisava da atuação e do engajamento dos sindicatos, visto dos ataques quase que diários sofridos pela categoria da educação (e dos servidores públicos em geral). Toda semana a classe enfrentava um novo revés: reforma da previdência, reforma administrativa, reforma do Ensino Médio, congelamento de salários e cortes de benefícios, estrangulamento orçamentário dos institutos e universidades federais, fim de concursos públicos, sobrecarga de trabalho para técnicos e docentes, políticas de desvalorização das carreiras docentes, política de terceirização e precarização do trabalho, redução de investimento em programas educacionais, congelamento de bolsas de ensino, pesquisa e extensão e até ministro dizendo que a suspensão de reajuste de servidores era “granada no bolso do inimigo” – lembram-se dessa fala do ex-ministro da Economia,Paulo Guedes? Isso é parte do cenário deixado pelo(s) governo(s)anterior(es) e que parece não ter incomodado a classe sindical. Por quê? O que houve? Onde estava a consciência de classe? Medo? De quê? De corte de salário? Mas, o Judiciário nunca esteve tão ativo para evitar abusos do autoritarismo quanto esteve neste período!
Vale ressaltar que a pauta da greve da educação pública federal, hoje, além de constitucional, é justa, correta, plena de sentido e legítima. O único “porém” que se coloca é quanto ao caráter temporal da deflagração que, inclusive, deveria ser motivador de autorreflexão dos sindicatos: por que somente agora? Por que não no passado? Por causa da pandemia? Mas, ela tomou dois dos seis anos dos governos passados. E a consciência de classe nos outros quatro anos, esteve onde? E, diante dessas questões, é claro, espera-se que o interlocutor venha retorquir bradando: “a greve só existe em regimes democráticos e com Lula esse direito nos é assegurado!”. Ao que se indaga: durante os governos Temer e Bolsonaro a Constituição de 1988 foi revogada? A ditadura foi instituída? Os Poderes Constitucionais foram abolidos? Cremos que o constitucionalista Michel Temer não concordaria com a asserção de que greve não é um Direito Constitucional. Ainda assim, mesmo com as suas pautas-bombas contra a educação e o serviço público em geral, o governo Temersequer foi ameaçado por uma greve.
A justificativa para as questões que aqui são levantadas é que parece haver uma flagrante incoerência e precipitação da classe sindical nesta deflagração específica de greve. Não se abandona uma negociação até que se exaure todas as possibilidades de acordos no diálogo! Essa era a cartilha clássica do movimento sindical num passado ainda recente. Mudou?
Do lado do governo, ao que se acompanha no dia-a-dia do Planalto, este se manteve aberto ao diálogo, à negociação, mesmo antes da deflagração da greve. Isso é provado pela instituição deMesa Nacional de Negociação Permanente (MNNP), Mesa Específica e Temporária da Educação do Magistério Federal e Ensino Básico, Técnico e Tecnológico (EBTT) e Mesa Setorial de Negociação Permanente no âmbito do Ministério da Educação (MEC) que são três instâncias diferentes que discutem carreira e reajuste salarial e impactam diretamente a categoria docentes. Por que, então, abandonaram as mesas? Saudade de fazer greve? Sangria desatada? Não tiveram a habilidade de negociar por mais algumas semanas ou meses? E os anos de inação, não ensinaram a exercitar a paciência?
Certo é que os efeitos sociais (pressão social, pressão política, insatisfação comunitária, indignação, revolta etc.), geralmente esperados de uma greve, já começaram a se manifestar. No dia seguinte à deflagração da greve na UFT, por exemplo, vimos no portão central da instituição um cartaz com o retrato do Lula ao lado de um jumento, como que a posarem sorridentes para uma selfie, que dizia: “Nós, alunos da UFT – Campus de Palmas – somos contra a greve” e, concluía, “Engole o choro e faz o L”.
Ressalta-se o significado e o peso político desta última frase. Não importa se seus autores não conseguiram distinguir que, neste momento da história, os sindicatos e o governo estão em lados opostos e, muito menos, se, injustamente, afixaram – sem assinar – em nome de todos os estudantes que, muito possivelmente, não devem concordar com o teor da faixa. Ainda assim, valepensarmos que, independentemente dos lados opostos em que se encontram, neste momento, governo e sindicatos, a acusação de que as universidades promovem “balbúrdia” (Ass.: Abraham Weintraub), irá, com o transcorrer da greve, reverberar associando o estado de coisas atual à imagem do Lula. “Engole o choro e faz o L” será o mantra dos “insatisfeitos”. E isso é um prato cheio para a extrema direita que, na torcida, maquiavelicamente, já olha para o cenário, procura oportunidade, e começa a usar as redes sociais (coisa que fazem com maestria) na expectativa de gerar no imaginário coletivo a percepção de que o atual governo é um caos, que as universidades públicas são uma bagunça e que nos governos anteriores (Temer e Bolsonaro) as coisas estavam tão boas que “sequer houve uma greve”. E a grande massa, mormente,sem instrução e poder de análise crítica, acreditará que se trata de uma verdade, todas as vezes que a “tia do zap”, desavisadamente,fizer o compartilhamento de mais uma fake news.
O que deveríamos refletir neste momento é que, queira ou não, depois da pandemia e com um governo de extrema direita atacando a todo momento as universidades públicas, o que vemos nestas instituições – ao contrário do que se vê nas instituições privadas, quase sempre lotadas de alunos – é um esvaziamento das salas de aula, uma evasão sem precedentes, com a maioria cursos começando com suas vagas “quase” que preenchidas (depois da “vigésima chamada” do vestibular), mas que não conseguem manter nem a metade desses ingressantes até o final do curso. O que está acontecendo? Seriam os processos seletivos os fatores dificultadores? Não, pois os alunos evadem logo depois dematriculados, portanto, depois de aprovados. Seria a qualidade ruim dos cursos? Também não. As universidades públicas, além de serem o locus da produção científica neste país e terem o que há de mais qualificado em termos de corpo docente (maioria de professores doutores), ainda gozam de serem as mais bem avaliadas pelos mecanismos de avaliação do MEC. Seria, então, o problema da infraestrutura? É óbvio que o estrangulamento orçamentário imposto pelos governos anteriores tiveram como consequência a precarização da infraestrutura da universidade pública que precisa, urgentemente, de melhorias. Contudo, ainda assim, como avaliador do INEP/MEC até um passado muito recente, certifico que o que temos ainda é muito melhor do que oferece a grande maioria das instituições privadas. Então, quais seriam as causas do desestímulo, dos trancamentos de matrículas, da reprovação e da evasão de grande parte dos estudantes dasuniversidades públicas? É óbvio que não se deve esperar de umartigo de jornal a resposta para uma questão tão complexa e que requer uma pesquisa científica aprofundada que envolvapedagogos, historiadores, filósofos, sociólogos, matemáticos, etc. Agora, e uma greve no meio de um semestre letivo, a despeito da sua legitimidade, ajuda na solução do problema? É óbvio que também não. Pelo contrário, parece que ela complica ainda mais a situação! De que adianta as instituições realizarem feiras de profissões, tours nos campi, visitas a laboratórios pelos alunos do Ensino Médio, ações de extensão e eventos acadêmicos abertos à comunidade, se, ao final, o que permanece no inconsciente coletivo, em termos de imagem cultivada da universidade pública, é a ideia reforçada de que “ela está em greve ‘mais uma vez”?Parece que este é precisamente um dos desestímulos, e não o único, que leva o estudante, apesar dos custos, a buscar uma instituição privada de educação superior.
E por que estou chamando a atenção para isso tudo? Porque, se “a paciência é a virtude dos sábios”, os sindicatos foram intransigentes em não permanecerem em mesa de negociação por um pouco mais de tempo antes de deflagarem uma greve que, de instrumento legítimo de reivindicação, passou a constituir, na acepção de muitos que não concordam com “esta greve específica”, manifestação da precipitação e contraexemplo de negociação que deve ser pautada no diálogo, principalmente, quando o interlocutor está disposto a ouvir. Por outro lado, os sindicatos não conseguiram, mais uma vez, mostrar nenhuma habilidade em usar da influência política, inclusive do PT e demais partidos de esquerda, para pautar na Lei Orçamentária Anual e garantir previsão na Lei de Diretrizes Orçamentárias de 2024, emendas que preenchessem as reivindicações que motivama presente greve.
Por fim, vale ressaltar que o presente texto não pretende servir de “fogo amigo” de um docente contra a representação sindical de sua classe. Greve é um direito inalienável da classe trabalhadora! Mais uma vez, seu questionamento é sobre a intempestividade da greve, isto é, sobre a falta de leitura do “espírito do tempo” (Zeitgeist) e paciência por parte dos sindicatos. E para quaisquer razões aqui postas, é claro, certamente caberá uma contrarrazão dos companheiros dos sindicatos. Respeito-as todas, por mais que possa não concordar com a maioria delas. Ainda assim, não abdicarei do direito de questionar e espero, no campo pessoal e das ideias, ser respeitado por ter uma visão de mundo diferente neste assunto particular. Este artigo busca, portanto, somentelançar luz sobre uma questão crucial, aproveitando o momento e o contexto adequados, e incentivar uma reflexão sobre as consequências futuras de uma ação que, muitas vezes, é realizada sem ponderação devido às emoções intensas. Essa ação, que parece isolada e limitada a uma única pauta (correção dos saláriosdos servidores), pode ter impactos não apenas sobre as universidades públicas, mas, principalmente, sobre os alunos que esperam poder depositar nelas a confiança de um futuro melhor. Contudo, uma vez que a greve está deflagrada, que continuem a luta! Expresso apenas o desejo de que, ao não aprendermos com a história, não tenhamos que arcar com as consequências de nossas decisões precipitadas.