Para o historiador Edward Thompson, a partir de meados do século XVIII, “o simbolismo do protesto popular às vezes desafiava a autoridade de forma muito direta”. Mas, mesmo esse desafio – muitas vezes – não representava a vontade da quebra da ordem. Era um tipo de “canhão” simbólico que não representava uma ruptura com a ordem social vigente.[1]
A manifestação dos caminhoneiros (ou das transportadoras), na última semana de maio, evidenciou um pouco disso. Não há nele uma tentativa de provocar a queda do governo de Michel Temer. Não havia luta para redução dos impostos. Não havia uma tentativa de baixar o preço dos combustíveis (apenas o diesel). Nele vimos não um movimento de classe. Classe, na concepção marxista, grosso modo, diz respeito ao interesse em comum.[2] Nesse sentido, não se luta por causas que oneram os demais segmentos da classe trabalhadora. Além disso, se fosse um movimento de classe, não veríamos nele um clamor pelo intervencionismo militar.
É trágico imaginar que, mais de trinta anos depois do fim da ditadura em nosso país, existam segmentos sociais que se negam a enxergar no período um autoritarismo típico de regimes despóticos. Ou pior, que se negam a aceitar que ele, de fato, existiu. É triste imaginar que, tantos anos depois, através da ocultação da verdade (com a censura) e da veiculação da farsa montada (com as propagandas) ainda existam “tresloucados” e “malucos” (nas palavras do comandante do Exercito, general Eduardo Villas Bôas) que defendam o retorno desse regime.
Dessa forma, acreditamos ser válido revisitar o período. Pois, não se trata de uma história contrafactual ligada a suposições que carregam consigo ideologias implícitas. Um regime ditatorial é resultado da rejeição de diversas características presentes num Estado democrático de Direito. Para o historiador Anthony W Pereira, “nem todos os regimes militares são idênticos na maneira como fazem uso da lei para punir opositores e dissidentes”.[3]Pereira trabalha com o que chama de “legalidade autoritária”. No caso brasileiro, escondendo-se através de leis e tribunais militares e civis, são julgados crimes contra a ordem estabelecida no Estado de exceção.[4] Essa suposta preocupação com a legalidade servia, justamente, para mascarar a veia autoritária do regime. Da mesma forma, a existência de certa movimentação político-cultural ou eleições regionais diretas (após 1979), não podem servir – exclusivamente – de parâmetro para esvaziar o rótulo de “ditadura”. Negar a sua existência, relativizar a duração do período – como defende alguns como Marco Antonio Villa[5] – ou atenuar as atrocidades da época – através da alcunha de “ditabranda”, defendida em editorial no Folha de São Paulo, em 17 de fevereiro de 2009 –, além de um desserviço para a sociedade brasileira em sua jornada democrática, são uma agressão à memória daqueles que viveram, sofreram e morreram por nutrir ideias diferentes dos agentes do Estado na época.
No início dos anos de 1960, o Brasil estava passando por um processo de abertura econômica, que se dava de forma gradual e no seio da sociedade civil. Mas quando a renúncia de Jânio Quadros permitiu a retomada do projeto nacional-estatista (marca característica do combatido governo populista de Getúlio Vargas) colocado em prática pelo governo de João Goulart através de suas Reformas de Base, o sopro de democracia deu lugar ao regime que impôs ao país o crescimento da economia – sob o financiamento dos Estados Unidos – à custa do bem-estar social do povo. A base de sustentação do novo governo foi uma política do medo. Através dessa imposição visavam manter a nova ordem estabelecida. Assim, em 1964, “a ditadura, finalmente, instaurou-se sob o signo do medo. Medo de que as desigualdades fossem questionadas por um processo de redistribuição de renda e de poder”.[6]
A instalação de regimes ditatoriais, sob a liderança das Forças Armadas, foi muito comum em, praticamente, todo o Cone Sul. Tais regimes foram reflexo da bipolarização do mundo entre os blocos capitalista e socialista durante a Guerra Fria. O mundo se encontrava num turbilhão político, social e cultural. Eram anos de enfrentamento político, mas também de mudanças nos padrões comportamentais. O brasilianista Thomas Skidmore caracteriza o golpe civil-militar de 1964 como uma “ruptura constitucional que representava o fim da democracia brasileira que se iniciara em 1945”.[7] Para ele, “aqueles anos repugnaram a muitos estudiosos, tanto por causa da indesculpável repressão governamental quanto pelos seus êxitos superficiais (conquista do campeonato mundial de futebol de 1970, 11% de crescimento econômico etc.)”.[8]
As vozes da época
Para Foucault, “o discurso não é simplesmente aquilo que traduz as lutas ou os sistemas de dominação, mas aquilo por que, pelo que se luta, o poder do qual nos queremos apoderar”.[9] Em tempos de desrespeito à liberdade de expressão, as músicas serviram para canalizar o desejo reprimido de se posicionar. Elas se transformaram em armas na resistência ao regime. Caetano Veloso dizia não ao não, em sua canção “É proibido proibir”. A música “Cálice”, interpretada por Chico Buarque e Milton Nascimento, demonstra duas características da ditadura: a censura e a violência.
Pai, afasta de mim esse cálice (…)
De vinho tinto de sangue
Como beber dessa bebida amarga
Tragar a dor, engolir a labuta
Mesmo calada a boca, resta o peito
Silêncio na cidade não se escuta
De que me vale ser filho da santa
Melhor seria ser filho da outra
Outra realidade menos morta
Tanta mentira, tanta força bruta
A “mentira” e a “força bruta”, esboçadas na letra da canção, correspondem à lógica de hegemonia, fundada na dominação política e social.
Não só na música percebemos denúncias sobre as arbitrariedades do regime, evidenciando o caráter ditatorial do período. “Considero Médici o maior assassino da história do Brasil”, disse João Saldanha (o João-sem-medo), polêmico colunista esportivo em rádios do Rio de Janeiro e ex-treinador da seleção brasileira. Dispensado do cargo às vésperas da Copa do Mundo de 1970, sua figura, segundo Carlos Eduardo Sarmento, desde o início gerou um incômodo para as lideranças militares por causa da “sua explícita simpatia pelos movimentos de esquerda e a um flerte com as fileiras do Partido Comunista”.[10] A escritora e jornalista Clarice Lispector foi outra a se posicionar contra a ditadura na época. Ela participou, em junho de 1968, de uma manifestação popular organizada pelo movimento estudantil contra a ditadura militar, que veio a ser conhecida como a “Passeata dos Cem Mil”. A manifestação foi duramente reprimida pelos militares. Sobre ela, o poeta Carlos Drummond de Andrade escreveu:
Das lutas de rua no Rio
em 68, que nos resta
mais positivo, mais queimante
do que as fotos acusadoras,
tão vivas hoje como então,
a lembrar como exorcizar?
Em fins de agosto e princípio de setembro de 1968, Márcio Moreira Alves, deputado e combativo crítico do governo, pronunciou uma série de discursos denunciando a brutalidade policial e a tortura de presos políticos”.[11] O entreguista Carlos Lacerda chamava o gênio da dramaturgia, Dias Gomes, de “apenas um subversivo” por ser filiado ao Partido Comunista, tendo diversos dos seus trabalhos censurados. Quem não lembra do mais famoso arquiteto brasileiro, Oscar Niemeyer? Documentos recuperados do Serviço Nacional de Informações (SNI) da época, mostram que “um coronel se empenhou em divulgar o boato de que trabalhos de Niemeyer seriam um plágio dos projetos do arquiteto suíço Le Corbusier”. Tudo para enfraquecer a imagem de um dos maiores representantes do comunismo no Brasil. Uma violência contra quem trabalha.
No dia 3 de abril de 1964, diante de uma onda de violência que se avolumou após a queda de João Goulart, no Rio de Janeiro, por conta das forças do governo, o Correio da Manhã (que contribuiu discursivamente para a deposição do presidente e a tomada de poder pelos militares) dizia, em editorial, não admitir “que se prepare e se organize a investida brutal do totalitarismo de direita para o esmagamento das liberdades democráticas. A liberdade é um dogma. Existe ou não existe. Liberdade pela metade já não é liberdade. Já é uma forma de negá-la e destruí-la. E isto não podemos aceitar”.[12]
A violência contra os cérebros também era exercida pela ditadura. Para o coordenador de História da Ciência do Museu de Astronomia e Ciências Afins (MAST), Alfredo Tolmasquim, “o regime promoveu uma fuga de cérebros do Brasil”. Cientistas da USP foram perseguidos pelos militares por que muitos se posicionarem contra o regime e por fazerem parte das organizações de resistência.
A memória política
Será que essas figuras, que marcaram a história do Brasil, e que vivenciaram os anos de chumbo, não tinham consciência do que vivenciaram? Se esses artistas, escritores, jornalistas, poetas, dramaturgos, políticos, intelectuais e tantos outros de fato tinham ciência do que viam, como há gente que hoje, ao lembrar daqueles tempos, sente saudades e deseja o retorno dos militares? Preferimos achar que o ser humano, na maior parte das vezes, se engana quando pensa em retrospectiva. Quando se vale apenas da memória para lembrar, deixando os fatos, os discursos produzidos do momento recordado de lado. Para Thomas Hobbes, quando “afastamos de nossa visão qualquer objeto, embora a impressão provocada por ele em nós permaneça, a sucessão de outros objetos mais presentes agindo sobre nós faz a imaginação do passado se obscurecer e enfraquecer”.[13]
A memória é uma ilha de edição, dizia Wally Salomão. O sociólogo Maurice Halbwachs observa que quando há uma crise nas instituições sociais e políticas, a melhor forma de ajudá-las é se aproveitar das tradições.[14] E com a crise atual das instituições detentoras da verdade (jurídicas e culturais), um político que se apodera de uma tradição, de um gigantesco repertório de lembranças entranhadas na memória coletiva das pessoas, não pode ser encarado com desdém.
É a partir dessa memória que se desabrocha uma cultura política popular na qual se reivindica uma autoridade, um vocabulário e uma forma de pensar particular. Se conversarmos com um seguidor de Bolsonaro, este dirá que se você não concorda com o que ele diz, você ou é petista ou defensor de vagabundo (quando não as duas coisas). É um vocabulário de uma cultura política enquadrada dentro de valores e normas capazes de invocar determinadas representações de nossa sociedade.[15] O comunista dos anos de 1960 hoje é o petista. Já o vocábulo “vagabundo” permaneceu o mesmo.
A memória política confronta a realidade jurídica, cultural e política que se pauta em versões do passado nas quais o cidadão comum não se sente representado. Dessa maneira, indivíduos ou grupos agem estrategicamente trazendo sua memória política (que existe no submundo da memória social não representada oficialmente) para a esfera pública. Contudo, sua finalidade não é a compreensão ou o entendimento, mas o confronto e a rivalidade, ou a influência e a sujeição.[16]
Assim se reconstrói elementos rejeitados pela história oficial (aquela em que uma parcela considerada de indivíduos não se enxerga). A ditadura militar pode ser vista como positiva na memória de grupos que não participaram de movimentos políticos da época, que não tiveram parentes perseguidos etc. Por que não trazer isso para a discussão política provocando uma atração desses grupos que, por sua vez, são a maioria da população? No entanto, temos que levar em conta que a memória lembra a partir do presente, seleciona fatos através de um ponto de vista, de um interesse. Portanto, ela é por natureza falsificadora.
Essa memória se constitui facilmente pelo discurso. Nosso cérebro é composto por uma maquinaria lógica interna que nos permite fazer uma leitura das coisas construindo um sentido via uma sequência. Cada sujeito possui uma condição interna essencial. No entanto, essa sequência lógica recebe impactos dos “funcionamentos laterais [ideologias, crenças etc.] que acrescentam interpretações às informações construídas”. Para o analista de discurso Michel Pêcheux, a “condição essencial da produção e interpretação de uma sequência […] reside de fato na existência de um corpo sócio-histórico de traços discursivos”. Ou seja, a língua permite uma “inscrição de traços linguageiros discursivos, que forma uma memória sócio-histórica”.[17]
Se nos prendermos aos fatos veremos que o grande discurso dos apoiadores do movimento foi o afastamento de uma possível ameaça socialista do país. Mas os pequenos grupos de guerrilha e as Ligas Camponesas, por exemplo, não representavam perigo à ordem democrática brasileira. O sociólogo Marcelo Ridenti diz que as propostas de guerrilha de antes de 1964 eram, sobretudo, retóricas. E “o único esboço, realizado pelo Movimento Revolucionário Tiradentes fundado em abril de 1962, foi derrotado em dezembro do mesmo ano, durante o governo do João Goulart”.[18] Tínhamos, portanto, uma questão falsa. Mas, que se aproveitou de elementos mentais e contextuais tão protuberantes à época que, ainda hoje, a memória faz questão de recuperá-la, sendo invocada (por meio de discursos e malabarismos retóricos atualizados) toda vez que a suposta ordem parece estar em declínio.
Os anos que se seguiram ao golpe de 1964, com o aprofundamento do regime instaurado, foram de embate entre a direita e a esquerda brasileira. Cada vez mais radicalizados – por causa do cerceamento dos direitos políticos imposto pela ditadura militar – os movimentos de esquerda acabaram dando a justificativa que os militares queriam para a manutenção do poder. Como resultado, tivemos graves violações de direitos humanos, centenas de mortos e desaparecidos e a banalização da prática da tortura pelos agentes do Estado.
Mas a memória apagou esses fatos e relacionou a não punição dos militares pelos crimes cometidos durante a ditadura com a ideia de justiça. Se não houve punição, não houve crime. E as Forças Armadas seguem sendo a instituição mais confiável popularmente. Se os militares fossem punidos assim como os de outros regimes ditatoriais da América Latina, talvez a memória fosse outra.
A questão é: não devemos confiar na memória, agora menos ainda por ela estar sendo manipulada por grupos que querem retrogradar o país em vez de pensar para frente. Contaminados pela “retrotopia”, resolvemos crucificar o futuro e se virar para um paraíso nostálgico. Como demonstrou Bauman: “Enquanto, no século XVII, a nostalgia era vista como moléstia eminentemente curável, que, segundo recomendação de médicos suíços, por exemplo, poderia ser tratada com ópio, sanguessugas e uma viagem para as montanhas, ‘no século XXI, a doença passageira se tornou uma condição moderna incurável’. O século XX começou com uma utopia futurista e acabou com a nostalgia”.[19] O que mostra que a missão dos historiadores tornou-se um desafio árduo, já que o ópio, as sanguessugas e uma viagem para as montanhas, não poderão de fato nos livrar dessa peste.
Fonte: Le Monde Diplomatique