No início de outubro, a Ouvidoria-Geral da União (OGU) passou a publicar um painel de estatísticas que joga mais de luz sobre as relações entre os órgãos da administração pública federal e os cidadãos. A partir do nome da publicação, que é uma pergunta e não um mero título — “Resolveu?” —, a OGU anuncia a disposição de tratar de mais elementos da realidade do que seria possível se fizesse apenas a simples tabulação de dados reunidos por centrais de telefônicas e virtuais.

Resolveu? apresenta os resultados da coleta e análise de números referentes aos serviços de atendimento das ouvidorias públicas do país, bem como do acesso a esses serviços, numa perspectiva ampla.

Aumentar a presença virtual das ouvidorias públicas é uma aposta da OGU para otimizar a atividade. Atualmente, é possível fazer denúncias, sugestões, reclamações, solicitações ou elogios a qualquer ouvidoria federal através do Portal e-OUV, um sistema centralizado. A Controladoria-Geral da União, principal órgão de prestação de contas interno da administração pública, também recepciona manifestações feitas através de seus perfis nas redes sociais, de acordo com o ouvidor-geral, Gilberto Waller Júnior. Ele afirma que manter essa estrutura faz parte das atribuições de uma ouvidoria moderna: ser proativa e identificar de antemão onde a sua presença é necessária:

— O Estado não está esperando que o cidadão acione o canal oficial. Está indo buscar a demanda onde ela estiver. É mais fácil ficar passivo, esperando, mas hoje o cidadão conversa em outros meios. Se ele está descontente, cabe a nós ir atrás.

A busca por maior capilaridade para o trabalho das ouvidorias se dá num contexto nacional peculiar — o de avaliação bastante negativa dos serviços fornecidos pelo Estado e de uma crise de representatividade política, fenômenos que se interligam, conforme um vasto leque de estudos publicados nos últimos anos por cientistas políticos e sociais. Recuperar, portanto, a credibilidade do Estado, é uma missão que exige, entre outros ingredientes, a atuação de “sistemas de percepção” bem posicionados junto aos cidadãos.

Canais

A multiplicidade de canais abertos para a população é atributo fundamental para o trabalho de uma ouvidoria pública. Além disso, a capacidade de iniciativa própria é uma característica que está nas origens do trabalho desses órgãos no Brasil.

É o que explica o jurista Manoel Eduardo Gomes, responsável pela condução da primeira ouvidoria estatal na história moderna do país: a da Prefeitura de Curitiba (PR), entre 1986 e 1989. O ouvidor, observa Gomes, pode agir de ofício, a partir de notícias veiculadas pela imprensa ou de denúncias anônimas, sem precisar aguardar uma comunicação formal através dos canais oficiais.

Essa prerrogativa é um aspecto da natureza do papel do profissional da ouvidoria: ao contrário do restante da administração pública, ele deve estabelecer proximidade e até confidencialidade com o público. E isso tem raízes históricas. Segundo o próprio site da OGU, a estrutura que hoje usualmente chamamos de Ouvidoria Pública surgiu em 1809, na Suécia, com o objetivo de receber e encaminhar as queixas dos cidadãos contra os órgãos públicos. Nessa época, firmou-se o uso, nesta acepção, da palavra ombudsman que, em sueco, adquiriu a partir daquele momento o significado de “representante do povo”. Outras fontes, mencionam “mediador” e até “agente parlamentar de justiça”.

No Brasil, a palavra ouvidoria, que entre os séculos 16 e 19 referia-se a estruturas de vigilância social e política destinadas a fazer valer o poder autoritário de donatários e, posteriormente da Coroa portuguesa, foi convertida nos anos 1980 para um sentido democrático (ver box abaixo).

— Na relação com o cidadão, a marca da ouvidoria é o princípio da pessoalidade. O ombudsman tem acesso direto, gratuito e informal. É um meio de controle atípico, e essa atipicidade é poder receber denúncias de loucos, de menores, pela oralidade, pessoalmente…

De todo modo, o ouvidor deve ser um aliado do cidadão na sua relação com o Estado, mas sem deixar de servir a este. Danielle Ventura, presidente da Associação Brasileira de Ouvidores/Ombudsman (ABO) no Distrito Federal, descreve o profissional como um “facilitador” da comunicação entre duas partes. Como qualquer estrutura governamental (ou corporativa, no caso de ouvidores do setor privado) é “uma imensidão”, nas palavras dela, cabe ao ouvidor ser o intérprete tanto do pleito quanto da sua resposta.

— O ouvidor veste duas camisas ao mesmo tempo. Representamos a voz do cidadão dentro da instituição e, quando conseguimos o retorno, representamos a instituição para o cidadão.

Gestão

Além de um canal de controle social, as ouvidorias são um instrumento de gestão. A resolução individual de cada problema encaminhado é o primeiro nível do trabalho do ombudsman, mas se resumir a isso seria apenas “enxugar gelo”, com explica o ouvidor-geral da União Gilberto Waller Júnior.

— O que uma ouvidoria tem que fazer é uma análise qualitativa da demanda. O conjunto das reclamações mostra ao gestor a efetividade de uma política pública, de um serviço.

A consolidação estatística que a OGU passou a promover se relaciona com essa percepção, segundo Waller. Mapear onde se localizam as manifestações da sociedade a respeito de órgãos e programas, e também qual é a natureza delas, permite o aprimoramento da máquina pública.

Os números do Resolveu? mostram que a maior parte dos apelos a ouvidorias desde 2014 — entre reclamações, pedidos, denúncias, sugestões e elogios — tem a ver com assuntos relacionados a educação: o Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) e o Fundo de Financiamento ao Estudante do Ensino Superior (Fies) têm, combinados, mais de 15 mil manifestações nos canais federais. Além disso, o Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep), órgão responsável pelo Enem, é um dos mais procurados na administração federal: mais de 19 mil manifestações foram direcionadas a ele.

O tema individual com a maior procura é o programa Microempreendedor Individual (MEI), que reúne, sozinho, mais de 11 mil manifestações. Entre os órgãos, a Controladoria-Geral da União é a mais acionada: mais de 41 mil manifestações.

Uma ouvidoria eficiente também pode contribuir para reduzir os custos da administração. Atuando como mediadores de conflitos entre os cidadãos e o Estado, elas são capazes de reduzir a margem para litígio judicial. Essa é a lógica predominante da atividade no setor privado.

No caso do Executivo federal, a importância do aprimoramento das ouvidorias se mostra mais premente hoje, na esteira de investigações em grande escala, inclusive do ponto de vista policial, relacionadas ao uso de verbas orçamentárias por meio da interação entre agentes públicos e privados.

Manoel Eduardo Gomes avalia que os eventos dos últimos anos revelaram o “pouco papel curativo” das ouvidorias brasileiras, uma vez que, na sua opinião, elas pouco puderam fazer para impedir ou minimizar os danos à imagem da administração pública.

Para ele, é preciso estabelecer uma rede fortalecida de ouvidorias com respaldo inquestionável dentro da administração para realizar o trabalho. No comando dessa estrutura, opina ele, deveria estar um “notável”, uma figura de nome conhecido e histórico público.

— Faltaram algumas prerrogativas de independência e autonomia da OGU. Faltou um processo seletivo do ouvidor que determinasse a escolha de alguém com grande prestígio nacional, cuja opinião fosse determinante na condução das ações dos políticos — avalia Gomes.

Gilberto Waller Júnior, que chegou ao cargo de ouvidor-geral da União em 2016, diz que a OGU esteve atuante durante todo o processo de revelação e investigação dos escândalos recentes. Segundo ele, cerca de 70% dos casos de apuração de desvios internos se iniciam através de denúncias feitas a alguma ouvidoria, cujo autor pode ser um cidadão privado ou um servidor público. O relato é encaminhado à Polícia Federal, à Controladoria-Geral da União ou ao Ministério Público. Além disso, a OGU atua nos acordos de leniência com empresas acusadas, que podem levar à conclusão dos casos.

Posto de atendimento de Valinhos (SP): atuação eficiente das ouvidorias pode ter papel de redução de custos na administração pública (foto: Prefeitura de Valinhos)

Legislação

O trabalho das ouvidorias públicas do país se escora, desde 2017, na legislação mais completa a respeito. A Lei de Proteção e Defesa dos Usuários de Serviços Públicos, sancionada em junho, se originou de um projeto do Senado (PLS 439/1999, do ex-senador Lúcio Alcântara).

A lei explicita os direitos básicos dos cidadãos diante da administração pública, direta e indireta, regulamenta ferramentas para avaliação e transparência de serviços públicos e disciplina prazos e condições para abertura de processo administrativo para apurar danos causados pelos agentes públicos.

Sessão do Senado, de 6 de junho de 2017, em que foi aprovada a Lei de Proteção e Defesa dos Usuários de Serviços Públicos (foto: Jefferson Rudy/Agência Senado)

O texto tem dispositivos específicos sobre a atuação das ouvidorias. Delineia as funções desses departamentos, consagrando o acompanhamento da prestação de serviços e a promoção de conciliação entre usuário e órgão.

Cabe às ouvidorias, no atendimento ao cidadão, encaminhar a decisão administrativa uma demanda em até 60 dias — 30 dias, com uma prorrogação. Outros órgãos podem complementar as informações no prazo máximo de 40 dias.

Na atuação interna, as ouvidorias devem elaborar relatórios de gestão com indicação de falhas e sugestões de melhorias. Os documentos precisam indicar número de manifestações no ano, com análise de problemas recorrentes e providências tomadas.

Autonomia

Um terreno onde a legislação não entra é a garantia de autonomia funcional para as ouvidorias dentro dos órgãos aos quais elas servem. Explicitar isso seria uma demarcação importante, segundo Danielle Ventura, da ABO-DF. A eficiência do trabalho do ombudsman depende de uma posição de imparcialidade, que só pode ser alcançada por meio de uma vinculação direta à alta gestão que a dê respaldo:

— Se não tiver essa validação, [a ouvidoria] vira um protocolo, existe só para cumprir obrigação. Se a ouvidoria estiver muito burocratizada, muito abaixo na hierarquia, ela não consegue penetrar nos vários setores e resolver demandas.

Essa necessidade, conforme Danielle Ventura, existe porque a ouvidoria deve ter acesso direto às decisões do órgão ou da instituição onde está instalada, para que possa de fato influenciá-las.

Danielle Ventura: sem respaldo da alta gestão, ouvidorias têm pouca eficácia (foto: Arquivo Pessoal)

No setor privado é assim. No setor público, a localização funcional da ouvidora é, idealmente, no Poder Legislativo, uma vez que ela precisa ter a independência suficiente para interpelar o Executivo. No Brasil isso não tem acontecido. Manoel Eduardo Gomes observa que, apesar de o país ter adotado ouvidorias amplamente, o trabalho é frequentemente “amesquinhado”:

— O que temos muito são as ouvidorias como instrumento de marketing político, ligadas ao Executivo, com cargos comissionados. A ouvidoria só tem sentido se for autônoma e independente, e isso se adquire em lei: estabilidade, mandato imperativo, eleição pelo parlamento, [o ouvidor] só pode ser destituído através de procedimento especial — afirma o jurista.

A Constituição faz menção a apenas duas ouvidorias públicas, garantindo a sua posição no ápice das suas respectivas estruturas: a ouvidoria do Judiciário, que responde diretamente ao Conselho Nacional de Justiça (CNJ), e a ouvidoria do Ministério Público, que responde diretamente ao conselho do órgão (CNMP).

História

A experiência pioneira com uma ouvidoria pública no Brasil pós-ditadura militar deu-se em Curitiba. Manoel Eduardo Gomes comandou a ouvidoria da prefeitura da capital paranaense na gestão do prefeito Roberto Requião (1986-1989), o primeiro eleito pelo voto popular depois de 20 anos.

Gomes, hoje professor da Universidade Federal do Paraná (UFPR), participava da equipe de Requião como assessor na área de justiça. Ele conta que o grupo, ao assumir o município, encontrou uma “racionalidade autoritária” na estrutura de governo, tomada por “intransparência absoluta”:

— Começamos a pensar em alternativas para democratizar a gestão. Surgiu a ideia de instaurar um espaço que recepcionasse as reclamações, denúncias e sugestões dos administrados em face dos atos praticados pela prefeitura.

O problema era que não havia qualquer referência prática ou teórica no Brasil para a empreitada. A solução foi pedir ajuda internacional: o time de Gomes enviou cartas para as embaixadas de vários países que já contavam com ouvidores em seus governos, e elas fizeram a ponte com os órgãos correspondentes.

Fachada da primeira ouvidoria estatal do país, criada pela Prefeitura de Curitiba em 1986 (Foto: Marcos Campos/Fundação Cultural de Curitiba)

A ouvidoria de Curitiba nasceu através de um decreto do prefeito, e foi inicialmente vinculada ao Executivo. Não era o melhor posicionamento para ela, mas era preciso fazer um experimento controlado, explica Gomes:

— O habitat natural seria o Legislativo, mas meu grande receio na época era viciarmos a instituição. Faríamos um projeto-piloto por um ano, seguido de uma avaliação. Se fosse positiva, encaminharíamos para a Câmara Municipal um projeto de lei instituindo a ouvidoria nos moldes tradicionais.

Após constatado o sucesso da iniciativa, a equipe fez justamente isso. Em 1988 entrou em vigor a Lei Orgânica de Curitiba — a “Constituição” do município — que contava com dispositivos específicos sobre a ouvidoria e o seu titular. O ouvidor municipal, eleito pelos vereadores, ganhou amplos poderes de investigação. Informações solicitadas por ele devem ser respondidas em até 15 dias úteis, sob pena de responsabilização da autoridade que descumprir o prazo.

Após o projeto-piloto a ouvidoria municipal foi descontinuada, e voltando a operar somente em 2015, com regulamentação específica. Roberto Requião foi eleito governador em 1990 e manteve na sua equipe Manoel Eduardo Gomes, que replicou a experiência no nível estadual. Outras ouvidorias surgiram pelo país nos anos seguintes inspiradas no modelo curitibano.

O ouvidor

A origem do nome “ouvidor” remonta aos tempos do Brasil colonial. Durante a vigência das capitanias hereditárias, os ouvidores eram autoridades locais que decidiam sobre causas cíveis e criminais dentro da sua área de atuação e presidiam a escolha de juízes e oficiais de justiça. Subordinados aos donatários, tinham o poder de impedir a entrada de representantes da Coroa na capitania.

Após o fracasso do sistema, Portugal instalou em 1549 um governo-geral na cidade de Salvador, centralizando a administração da colônia. A nova organização trouxe consigo a figura do ouvidor-mor. Ele se tornou a autoridade judiciária máxima do território, colocando essa atividade sob o controle direto da Coroa, através do governador-geral. O ouvidor, por sinal, era um dos encarregados de governar a colônia provisoriamente quando houvesse a substituição do governador, junto com o provedor-mor (autoridade do tesouro).

Ao longo do tempo a função do ouvidor-mor passou por modificações: o cargo foi multiplicado para dar conta da descentralização do governo-geral e depois foi incorporado à nova estrutura judiciária da colônia, que passou a contar com tribunais superiores a partir do século 17.

No período imperial a figura do ouvidor se transformou em “juiz do povo”. Ele era o encarregado de recolher manifestações de descontentamento e encaminhá-las à Corte. Foi esse o sentido resgatado pela ouvidoria de Curitiba na sua criação. Em busca de uma tradução para o termo oficial ombudsman, Manoel Eduardo Gomes incluiu o “ouvidor” entre as opções apresentadas ao então prefeito Roberto Requião, que a escolheu com base no entendimento intuitivo que a palavra carrega — “ouvidor” é “aquele que ouve”.

 

 

 

Fonte: Senado Federal