Depois que em 28 de fevereiro o governo do Distrito Federal decretou medidas de isolamento social para conter a disseminação do novo coronavírus, Brasília reviveu, por algumas semanas, um pouco do vazio monumental que caracterizou os primeiros anos após a sua inauguração. Outra mudança acarretada pela covid-19 foi o cancelamento dos planos quanto à comemoração do aniversário da cidade, que prometia reunir multidões no dia 21 de abril, repetindo o mítico ato inaugural de seis décadas atrás. Ato, aliás, que se estendeu por três dias de solenidades e festas iniciados com uma missa solene.

Enquanto as aglomerações não são recomendadas, o Governo do Distrito Federal (GDF) estuda uma data propícia para comemorar a fundação da capital: a princípio se pensou na possibilidade de remarcar os eventos para julho, o que já foi descartado. Se a pandemia não der sinais claros de arrefecimento, adiar a programação para 2021 parece a solução mais segura.

No momento, as comemorações terão de ser virtuais mesmo, mas esse dia não poderia passar em branco. Afinal, 60 anos é um marco histórico da obra inovadora dos modernistas Lucio Costa e Oscar Niemeyer, capitaneada pelo desenvolvimentista Juscelino Kubitschek. Apesar das controvérsias em torno da proposta, e os acidentes no percurso de implantação e consolidação, Brasília significou uma reviravolta na vida de um povo que passara mais de 400 anos “arranhando ao longo do mar”, feito caranguejo, conforme a expressão cunhada em 1630 pelo frei baiano Vicente do Salvador no seu História do Brazil.

A ideia de mudar a alta administração do país para o interior, de forma a protegê-la de ataques externos e interiorizar o desenvolvimento, começou a circular desde pelo menos o final do século 18 — e foi inclusive encaminhada formalmente a D. João VI. Acabou ganhando mais notoriedade com o apadrinhamento do deputado José Bonifácio, o Patriarca da Independência, em duas ocasiões: as reuniões das Cortes de Lisboa de 1821 e a Constituinte de 1823. Bonifácio chegou a sugerir o nome Brasília como uma das alternativas para a nova capital, ao lado de Pedrália.

Inserida nas constituições de 1891, 1934 e 1946, a transferência só se daria como consequência (não imediata) do projeto Marcha para o Oeste, lançado por Getúlio Vargas nos anos 1930 com o objetivo de povoar mais densamente a região. O local de escolha foi o mesmo apontado pela célebre incursão técnico-exploratória conhecida como Missão Cruls (1892 e 1894), que, por sua vez, seguira as indicações de manifestos publicados entre 1809 e 1813 pela Imprensa Régia de Portugal, pelo magistrado e político Antônio Rodrigues Veloso de Oliveira e pelo jornalista Hipólito José da Costa.

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Registro da equipe chefiada pelo belga Louis Ferdinand Cruls (foto: Reprodução)

Se o Brasil sonhava há tanto tempo com a interiorização do desenvolvimento, Juscelino precisava de uma obra de vulto para impulsionar o mandato presidencial obtido em 1955. A promessa feita em um modesto comício no interior de Goiás selaria o destino acalentado havia mais de cem anos e daria a JK a “meta-síntese’ de seu plano de governo, que prometia estradas e outros equipamentos de infraestrutura.

A entrega do projeto aos modernistas deu-se quase como uma consequência natural do impulso que o país tomava rumo a um novo ambiente econômico e cultural. As relações entre urbanistas e arquitetos da safra surgida entre os anos 20 e 30 e os políticos desenvolvimentistas datava já da construção da sede do Ministério da Educação e Saúde (1936-1938). Tanto o ministro Gustavo Capanema quanto JK foram revolucionários de primeira hora. Prefeito de Belo Horizonte e governador de Minas Gerais, Juscelino entregaria importantes projetos arquitetônicos a Oscar Niemeyer.

— Se observarmos bem, o conjunto da Lagoa da Pampulha, em Belo Horizonte, projetado pelo Oscar, é uma antecipação clara de Brasília — assinala Serafim Jardim, ex-assessor de JK e atual diretor do Museu Casa de Juscelino Kubitschek, em Diamantina (MG), terra natal do presidente falecido em 1976.

O otimismo empreendedor de Juscelino, ancorado na perspectiva conservadora do PSD, um dos rebentos partidários da máquina getulista, juntou-se à versão tropical das tendências racionalistas e funcionais da arquitetura europeia, que tinham pilares fincados numa visão do tipo socialista. A mescla resultou em um projeto urbanístico e arquitetônico único, apesar da forte influência da escola de Le Corbusier, arquiteto franco-suíço considerado o pai dos modernistas brasileiros.

O traçado urbano guiado por dois eixos, ao longo dos quais se distribuem quatro “escalas” de ocupação, procura estabelecer uma relação mais confortável e própria de interação dos seres humanos com a cidade no que diz respeito à moradia, às trocas sociais, comerciais e culturais, à fruição da natureza e ao exercício do poder político — esta última a função precípua de Brasília.

Segundo o crítico Mário Pedrosa (1900-1981), citado pela Enciclopédia Itaú Cultural, em Brasília a “articulação espacial é límpida, condensada e rítmica […] sem tropeços”.

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Lucio Costa, entre Juscelino Kubitschek (sentado) e Israel Pinheiro. No lado oposto da mesa, Oscar Niemeyer (foto: Arquivo Público – DF)

Nas escalas residencial e gregária privilegia-se a simplicidade dos edifícios horizontais de até seis pavimentos com pilotis, o que libera o caminhar por debaixo dos blocos, e busca-se a facilidade de locomoção e de acesso aos equipamentos. Na primeira, entretanto, a relação dos indivíduos é privada ou de vizinhança, enquanto na gregária, todos interagem. Na escala bucólica, a oferta de verde é ampla e franca, completando a arborização e o ajardinamento das superquadras, e amalgamando o conceito de cidade-parque. Na escala monumental, o indivíduo é colocado na dimensão de um papel cívico elevado, mas não imodesto, de acordo com a definição do próprio Lucio Costa, urbanista vencedor do concurso para o Plano Piloto em 1957.

“Ela [a cidade] deve ser concebida não como simples organismo capaz de preencher satisfatoriamente e sem esforço as funções vitais próprias de UMA CIDADE MODERNA QUALQUER, não apenas como URBS, mas como CIVITAS, possuidora dos atributos inerentes a uma capital. E, para tanto, a condição primeira é achar-se o urbanista imbuído de UMA CERTA DIGNIDADE E NOBREZA DE INTENÇÃO, porquanto dessa atitude fundamental decorrem a ordenação e o senso de conveniência e medida capazes de conferir, ao conjunto projetado, o desejável caráter monumental. Monumental, não no sentido de ostentação, mas no sentido da expressão palpável, por assim dizer, consciente, daquilo que vale e significa.”

Se a horizontalidade dos prédios residenciais e comerciais de quadra, a modicidade de escolas e postos de saúde e hospitais, inclusive pelo uso disseminado do concreto aparente, conferiu à capital o tom austero recomendado pelos precursores da arquitetura moderna, as linhas ousadas e sinuosas dos palácios da área monumental, assim como o aproveitamento dos declives do terreno, levam o indivíduo a transcender o cotidiano para alcançar os altos ideais políticos da nação.

Segundo ainda a Itaú Cultural, Niemeyer, que desenhou a maior parte dos prédios públicos e palácios, “atinge seu objetivo mediante a combinação de formas puras e geométricas trabalhadas de modos diversos, como é o caso do jogo das cúpulas invertidas do palácio do Congresso, ou as colunas com extremidades em vértice que se repetem nos palácios do Planalto, do Supremo e da Alvorada (transformando-se em símbolo de Brasília)”. Atinge-se a monumentalidade, mas “pela leveza e simplicidade, e pela harmonia e clareza das articulações entre as partes e o todo”. A enciclopédia ressalta igualmente o “caráter aéreo” tanto dos edifícios quanto do Plano Piloto: é “como se tudo estivesse suavemente pousado no solo”.

O cruzamento dos eixos, sendo o monumental reto e o rodoviário, arqueado, levou de fato muita gente a associar o desenho de Lucio Costa ao de um avião, mas essa não foi a intenção dele. O traçado, escreveu o urbanista em seu relatório ao júri do concurso, que tinha Niemeyer como um dos jurados, “nasceu do gesto primário de quem assinala um lugar ou dele toma posse: dois eixos cruzando-se em ângulo reto, ou seja, o próprio sinal da cruz”.

Falei em rabisco e pulsava

“Dia ‘histórico’ para mim foi aquele em que Lucio me apareceu, discreto como sempre, botando em minha mesa uma folha de papel rabiscada às pressas, com palavras e um esboço de desenho que aparentemente pouco significavam. Peguei a folha e tive entre os dedos nada menos do que a cidade de Brasília, inexistente e completa, como um germe contém e resume a vida de um homem, uma árvore, uma civilização. A primeira noção de uma cidade diferente de todas as outras até então imaginadas mostrava-se ali, nos traços rudimentares de uma cruz (ou um avião) plantada na terra ou alçando voo. O plano-piloto de Lucio dizia bem pouco para um leigo habituado a ver cidades em funcionamento e não no papel, um papel nada luxuoso como o dos grandes escritórios de arquitetura. Falei em rabisco e pulsava. Sem entender, eu sentia a vibração das formas implícitas naquela folha de papel que mudava a história do Governo do Brasil e, em certa escala, a vida dos brasileiros. Comovi-me. Lucio também devia estar comovido por ter achado a solução quase mágica para o problema de conceber uma Capital de País em termos absolutamente originais”. (Carlos Drummond de Andrade, em crônica publicada no Jornal do Brasil no dia 3 de março de 1982)

Costa vai ao ponto de confessar, no próprio relatório, que esboçou o plano para se desvencilhar de uma tarefa que nem sequer pretendia realizar, embora tenha sido frequentemente consultado pelos que se encarregaram dos três anos da primeira etapa de construção — e até depois.

A equipe de engenheiros e arquitetos comandada pelo então presidente da Novacap, Israel Pinheiro, coordenou uma extenuante, mas eufórica, jornada diária de três turnos de trabalho, na qual se engajaram mais de 20 empreiteiras e construtoras privadas e dezenas de milhares de trabalhadores braçais. A estimativa mais divulgada de gastos é de US$ 1,5 bilhão, valor que, atualizado hoje, seria superior a US$ 80 bilhões, consumidos numa quantidade incalculável de ferro, cimento e areia, entre outros materiais de construção, e no pagamento de mais de 40 mil operários, que recebiam entre 3 e 6 mil cruzeiros de salário. Censo do IBGE de 1959 apontou naquele momento a existência de 42 mil trabalhadores em obras, numa população de 64 mil pessoas.

A construção, que começou mesmo antes de vencido o concurso por Lúcio Costa, contra seus 40 concorrentes, obrigou esse pessoal a jornadas de até 18 horas, independentemente da alternância de turnos, de modo que as obras não paravam à noite. Serafim Jardim recorda o expediente dos jipes que iluminavam a pista do aeroporto para que JK pudesse pousar e vistoriar as obras. Um dos ícones dessa época de pioneirismo, do lema dos “50 anos em cinco”, é o Palácio Catetinho, projeto de Niemeyer construído em madeira, no qual o presidente recebeu até músicos que vinham animá-lo deserto do Planalto.

Se esse desafio gigantesco provocou críticas da oposição, personificada pelo deputado Carlos Lacerda (UDN), denúncias de gastos exorbitantes e irregulares veiculadas pelo jornal Tribuna da Imprensa, rombo nas contas públicas e inflação, o fato é que a ideia de construir a capital foi mais forte, contando com o apoio dos brasileiros e de uma intensa campanha de marketing do governo, que convidou intelectuais e dignatários estrangeiros para visitar — e aprovar — a capital da esperança e cidade do futuro. Aqui esteve, por exemplo, o casal de filósofos franceses Jean Paul Sartre e Simone de Beauvoir, em setembro de 1960. Em fevereiro, viera o presidente dos Estados Unidos, Dwight Eisenhower.

“Deste Planalto Central, desta solidão que em breve se transformará em cérebro das altas decisões nacionais, lanço os olhos mais uma vez sobre o amanhã do meu país e antevejo esta alvorada com fé inquebrantável e uma confiança sem limites no seu grande destino.” (Juscelino Kubitschek, em 2 de outubro de 1956)

O deslumbramento do mundo perante a obra, que perdura até hoje, influenciou fortemente a concessão ao conjunto do Plano Piloto do título de Patrimônio Cultural da Humanidade pela Unesco, em 1987, ano em que Lucio Costa publicou um novo relatório sobre a cidade, intitulado Brasília Revisitada. É nesse documento que o conceito das quatros escalas foi explicitado, e em que o urbanista procurou apontar caminhos para a continuação do crescimento de Brasília — incluindo correções de rumo.

Em 1987, já era visível o inchaço de muitas cidades do Distrito Federal e flagrante a ausência de um bom sistema de transportes públicos. Quando concebeu a capital, Costa acreditava que haveria a possibilidade de harmonizar o fluxo de automóveis nas vias rápidas projetadas por ele para Brasília, com o objetivo de evitar congestionamentos já presentes, segundo ele, em São Paulo e no Rio de Janeiro. Suas previsões não se cumpriram: na segunda metade dos anos 1980, Brasília tinha, assim como o resto do país, um trânsito violento, facilitado justamente pela generosidade das vias para com os carros e pela falta de rigor da fiscalização. O assunto já fizera parte inclusive de um depoimento do urbanista ao Senado em 1974.

O servidor público e ativista da mobilidade, Uirá Lourenço chama a atenção para alguns efeitos não intencionais da quarentena instituída com a pandemia da covid-19: menos poluição e mais espaço para os pedestres. E sugere que esse hiato deve ser usado como um período de reflexão e mudança de rumos.

“Não teremos festa para celebrar os 60 anos, para evitar aglomeração, mas teremos motivos de sobra para celebração caso as autoridades se convençam da importância de ações voltadas à mobilidade e à qualidade de vida. Além dos benefícios na mobilidade e segurança no trânsito, menos carros, ônibus e caminhões significam menos poluentes no ar. Pode-se imaginar uma cidade que aproveita o relevo plano e as áreas arborizadas para criar boas rotas para pedestres e ciclistas. Uma Brasília com menos carros é possível também após a pandemia, mas vontade política para mudar é fundamental”, argumenta ele em artigo no blog Brasília para Pessoas.

Os planos de expansão controlada inseridos no Brasília Revisitada, entretanto, tiveram pouco sucesso. Um conjunto que leva seu nome, implantado às margens da Via EPTG (Estrada Parque Taguatinga), a partir de um projeto originalmente destinado à periferia de Salvador (BA), acabou deturpado. Já os núcleos de ocupação próximos à orla do Lago Paranoá, previstos para acompanhar a consolidação da Vila Planalto, um complexo resultante de acampamentos de construtoras, também não vingaram. A região é hoje tomada por hotéis de luxo, enquanto a Vila assiste à destruição das últimas construções originais em madeira.

— Não existe, ao que parece, no Governo do Distrito Federal, um plano de conservação do patrimônio edificado em madeira em Brasília — lamenta a radialista, escritora e ativista Leiliane Rebouças, filha de pioneiros e moradora da Vila Planalto.

Segundo ela, essa lacuna é muito grave, já que grande parte das edificações de madeira, seja na Vila Planalto, seja na Vila Metropolitana, nas igrejinhas do Paranoá e da Candangolândia, ou no próprio HJK [Museu Vivo da Memória Candanga], precisam de medidas de urgentes.

— A conservação do patrimônio edificado tem que ser constante. Não há um plano nem na área de educação patrimonial nem na área de conservação dos prédios. E isso faz com que a gente vá perdendo aqueles prédios significativos da época da construção de Brasília, como está acontecendo aqui na Vila Planalto, onde a gente corre o risco de não ter mais nada.

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Ao lado da degradação desse patrimônio mais frágil, há desrespeito dentro da própria área tombada, por meio de “puxadinhos”, quiosques, uma profusão de placas totalmente em desacordo com a estética modernista, calçadas em mau estado ou inexistentes e inviabilização das passagens subterrâneas sob o Eixo Rodoviário.

“No início de março fui verificar as condições das passagens subterrâneas na Asa Norte, e constatei: continuam em total abandono. Pisos e revestimentos destruídos, escuridão e muita sujeira. Em dias de chuva, a situação piora, pois o piso fica escorregadio e a lama se acumula. A passagem próxima ao Hospital Regional da Asa Norte estava com um trecho submerso, o que obrigava as pessoas a atravessarem por cima”, denuncia Uirá Lourenço em seu blog.

O edifício do antigo Touring Club do Brasil, programado originalmente para ser uma casa de chá e ponto de ligação entre o setor cultural e os setores de diversão e comercial da região, já serviu de locação para órgãos públicos e templos religiosos. Seu térreo é atualmente utilizado como extensão da rodoviária.

— Esse prédio, maravilhosa criação de Oscar, tem enormes potenciais. Já tentei, décadas atrás, recuperá-lo para que fosse um ponto de encontro debruçado sobre o trecho mais nobre do Eixo Monumental e museu da memória do Plano Piloto. Enfrentei muito desinteresse e muita burocracia. Para ampliar minha frustração, o prédio foi depois ocupado pela polícia e utilizado como terminal de ônibus metropolitano. Um prédio que certamente merece um projeto especial — lamenta o urbanista Jorge Guilherme Francisconi.

Tudo isso somado à profusão de condomínios horizontais e favelas, decorrência da falta de políticas habitacionais ao longo dos anos, integra às quatros escala uma nova, temida pelo próprio Costa em seu relatório: a caótica.

Ainda que a maior parte das ocupações irregulares ocorra fora da área tombada, termina por afetar a cidade, já que o tecido urbano e as práticas não são estanques. Brasília e o DF se ressentem conjuntamente da histórica falta de critérios límpidos, consensuais e duradouros para a política de ocupação e uso do solo. Critérios que, como o próprio termo indica, permitam avaliar as situações e formar um juízo a partir do discernimento entre verdadeiro e falso, bem e mal, belo e feio, de modo a se obter escolhas ao mesmo tempo racionais e prudentes, mas sensíveis.

Se é impensável construir um shopping na Esplanada dos Ministérios, seria uma heresia ajardinar o tórrido cimentado que separa o Museu da República da Biblioteca Nacional? Francisconi acredita que não.

Guardiã do legado de Lucio Costa, sua filha Maria Elisa Costa diz que é preciso agir com rigor para preservar a área tombada.

— A meu ver, o aniversário dos 60 anos da inauguração de Brasília seria uma oportunidade ímpar para garantir a preservação do centro histórico de Brasília, do conjunto inserido nos limites da Bacia do Paranoá — defende Maria Elisa, também arquiteta.

Qualquer intervenção na área delimitada geograficamente pela Bacia do Paranoá, mesmo no entorno direto do perímetro tombado, deveria seguir, de acordo com Maria Elisa, o texto original da Portaria 314 do IPHAN, cabendo a fiscalização da compatibilidade com o texto a uma comissão técnica permanente e de alto nível, criada para esse fim e com poder de veto, contando com representantes da sociedade civil organizada, da Presidência da República e do Governo do Distrito Federal.

A portaria estabelece os parâmetros para o que deve ser mantido e o que não deve ser feito em matéria de construções. Determina, por exemplo, que a Praça dos Três Poderes “fica preservada como se encontra nesta data [8 de outubro de 1992], no que diz respeito aos Palácios do Planalto e do Supremo Tribunal Federal, ao Congresso Federal, bem como aos elementos escultórios que a complementam, inclusive o Panteão, a Pira, o Monumento ao Fogo Simbólico, construídos fora da praça, mas que se constituem parte integrante dela”. E que “nos terrenos do canteiro central verde são vedadas quaisquer edificações acima do nível do solo existente, garantindo a plena visibilidade ao conjunto monumental”.

— A Bacia do Paranoá é o território original de Brasília, onde JK lançou a âncora inventada por Lucio Costa, que assegurou a transferência definitiva da capital do país para o Centro-Oeste. É da maior importância, para a defesa histórica e cultural do Brasil, que possamos proteger o Centro Histórico da multiplicidade de pressões que atuam sobre a área urbana. Dessa forma, inclusive, a efetiva aplicação da legislação do tombamento de Brasília seria menos vulnerável a manipulações do que permanecendo de exclusiva responsabilidade do IPHAN, como é hoje — argumenta ela.

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Mapa da área tombada com a indicação de duas macroáreas: a original e a estendida (imagem: Reprodução/Iphan)

Maria Elisa reconhece que sua maior preocupação é exatamente com a área tombada, já que vê Brasília como a capital do país, mais do que como a “capital do DF”.

O crescimento natural ou desordenado das cidades cujo adjetivo “satélites” hoje é contestado, tem colocado cada vez mais em pauta um debate em torno da relação entre a civitas (a cidade política, administrativa) e a urbs (a cidade da vida comum). As duas expressões latinas foram associadas aos fundamentos urbanísticos da nova capital pelo próprio Lucio Costa, em seu relatório sobre o Plano Piloto.

O documento inaugurou um debate sobre urbanismo e arquitetura que marca a cidade desde sua origem, como fruto de uma formulação intelectual. A “posse” da terra e as edificações não se deram de maneira espontânea, mas numa tensão entre o que mandava o projeto, o que as condições e os meios permitiam e o que muitas cabeças sentenciavam. Uma prova da tenacidade do projeto é que o título do relatório acabou nomeando a própria área compreendida pelos dois eixos, como se a maquete persistisse sobreposta ou fundida à cidade efetivamente erguida.

“Brasília, cidade que inventei” (Lucio Costa)

Em artigo de 2002, as pesquisadoras Marília Luiza Peluso, geógrafa com mestrado em Arquitetura, e Lúcia Cony Faria Cidade, arquiteta com mestrado em Planejamento Urbano, fizeram uma provocante indagação a respeito das reais possibilidades de diálogo entre urbs e civitas no quadrilátero do DF.

No entender delas, a onda modernista demandou, “em oposição ao caos”, que as cidades “deviam se tornar racionais, privilegiar a linha reta, abolir o acaso e o multivariado da paisagem”. Mais: no que chamaram de “urbanismo iluminista”, a igualdade, a liberdade e a fraternidade, lemas da Revolução Francesa, “deveriam estar impressas no espaço, mesmo às custas da padronização das formas, dos trabalhos, da recreação, dos trajetos e da paisagem”.

Para as estudiosas, “Brasília é a filha dileta dessa corrente de pensamento urbanístico” e também deveria ser racional e igualitária: “morariam na mesma quadra o senador e seu motorista; o ministro e seu copeiro”. Peluso e Faria Cidade sublinharam no relatório do Plano Piloto o trecho no qual Lucio Costa recomenda uma “gradação social” na área reservada a moradias, que, a seu ver, poderia “ser dosada facilmente”, atribuindo-se maior valor a determinadas quadras.

O urbanista acreditava que o agrupamento das quadras de quatro em quatro propiciaria certo grau de coexistência social, evitando-se “uma indevida estratificação”. E apostava que a própria dinâmica dos empreendimentos imobiliários comandados pela Novacap, com a oferta de edifícios de diferentes padrões, impediria o eventual desconforto social, mas proveria “acomodações decentes e econômicas para a totalidade da população”, já que se deveria impedir a “enquistação de favelas tanto na periferia urbana quanto na rural”.

— A realidade do convívio superou, e muito, as expectativas de Lucio Costa, principalmente nas primeiras quadras erguidas: 106, 107 e 108, que abrigaram os servidores públicos atraídos do Rio de Janeiro com a “dobradinha” salarial. Havia muitos conflitos entre pessoas de níveis hierárquicos diferentes, já que altos funcionários, contínuos e motoristas moravam na mesma quadra, e algumas vezes no mesmo bloco. Os parlamentares costumavam ter blocos exclusivos. Preconceito e rejeição eram corriqueiros e se explicitavam de maneira aguda quando se tratavam de relacionamentos amorosos que ousavam transpor essas barreiras de classe e de renda — recorda o servidor da Câmara dos Deputados Massimo Jorio Veiga de Lemos.

A situação foi se acomodando na medida em que, pressionados pelo custo de vida e pela atmosfera pouco amigável, os mais humildes migraram para as cidades-satélites. Só ficaram no Plano Piloto aqueles que obtiveram progressão funcional, de acordo com Massimo Jorio.

Na visão das pesquisadoras, o conflito se instaurou “com a multidão que vinha sem ser convidada, para usufruir os bens, serviços e empregos, na sua busca do paraíso prometido na nova capital”. O embate entre moderno e tradicional “encontrou expressão na dicotomia Plano Piloto/cidades-satélites”. No “espaço finito e fechado, envolto por extensas áreas verdes de posse do governo, estava tudo o que era necessário para o bem-estar de seus moradores e para a função de capital federal. As mazelas dos grandes centros seriam afastadas dessa cidade burocrática, planejada para o Brasil do futuro”.

“Os homens solteiros de Brasília estão em condições de satisfazerem as exigências educacionais e econômicas de quaisquer pretendentes femininas. Já se vive bem em Brasília. Há conforto, modesto sem dúvida, mas suficiente para suprir as principais necessidades de gente possuída de boa vontade. Venham, pois, senhoritas! Os candangos de Brasília são bons, são gentis, são educados e futurosos. Não deixem passar a boa oportunidade, senhoritas, serão bem recebidas” (Diário de Notícias, do Rio de Janeiro, em 6 de fevereiro de 1958)

O fato é que as cidades-satélites se adiantaram no tempo, pois em 1970, quando o Distrito Federal havia atingido a população de cerca de 540 mil habitantes, sete delas já estavam implantadas. E, no Plano Piloto, o espaço público foi sendo “apropriado privadamente por bares, cafés, estacionamentos, expansões de residências, atividades informais e mesmo coberturas acima do gabarito”. A tal ponto que o tombamento “não é mais garantia de sua permanência como a civitas idealizada, ícone do planejamento racionalista”, no ver das duas estudiosas.

“Tudo isso pode parecer uma nova forma de desordem e não há a menor dúvida de que é realmente caótico o que se está gestando”, diz o estudo feito por elas. Para equacionar a disputa e preservar o que há de bom no projeto original, elas sugerem, em primeiro lugar, “a construção de um processo de planejamento, no qual o Estado e a sociedade possam pactuar o significado, o alcance e os limites da manutenção do patrimônio urbano”. E, em segundo lugar, “a instituição, no processo de planejamento, de práticas efetivas de gestão democrática do espaço”.

Quanto às pressões por maior participação da sociedade na gestão pública, Brasília encontra-se em plena efervescência pós-moderna. Coletivos, ONGs e até ativistas individuais cobram do governo a oferta de boas calçadas, travessias e ciclovias, além de permanecerem vigilantes por meio de uma das mais importantes conquistas da cidade — e que se tornou exemplo para todo o país: o considerável grau de respeito pelas faixas de pedestre, desde que uma campanha reunindo a sociedade civil, o governo e a imprensa deu à cidade um patamar mais elevado de cidadania e aproximou urbs e civitas.

Ao longo de sua história, a urbs também disputou em muitos momentos a atenção nacional. Isso se deu principalmente no terreno da cultura, pondo no passado de uma vez por todas a pecha de uma cidade que não tinha nada de próprio — por ser muito jovem e figurar apenas como um lugar temporário na cabeça dos que para cá se mudavam. A cena roqueira dos anos 80, com a ascensão de grupos como Legião Urbana, Capital Inicial e Plebe Rude, mostrou uma Brasília que se expressava com altivez, inclusive fazendo críticas mordazes à civitas onipresente no noticiário político.

A excelência musical do Clube do Choro, primeiro gênero cultivado na cidade por servidores públicos recém-chegados, é outra marca da cultura candanga, de braços com poetas que festejam em linguagem modernista tanto a tortuosidade das árvores do cerrado quanto a racionalidade dos endereços alfanúmericos, molduras para divagações filosóficas e reflexões sobre o amor.

Depois de 60 anos, o projeto de Lucio Costa já é parte constituinte da psique brasiliense. E mesmo com a separação física entre o Plano Piloto e as satélites, quem é do Gama, da Ceilândia, de Taguatinga, de Sobradinho ou do Guará também se sente brasiliense. Ou candango.

E todos defendem o direito de a urbs ser tratada como uma cidade a mais no que diz respeito às qualidades éticas.

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No mais, Brasília quer ser única e isso está na raiz do projeto de Lucio Costa, mas também na originalidade das obras de Niemeyer, que chegou a comprar uma briga intelectual por causa disso com o fundador da Bauhaus, a revolucionária escola de arquitetura e construção alemã, voltada a compromissos rigorosos com a moradia popular funcional de baixo custo. Em 1954, ao visitar a célebre residência que o arquiteto brasileiro incrustara de maneira sinuosa numa rocha na Estradas da Canoas, no Rio de Janeiro, Walter Gropius disse, conforme depoimento do próprio Niemeyer: “Sua casa é bonita, mas não é multiplicável!”. Niemeyer jamais perdoou Gropius. No futuro, ao recordar o episódio em várias ocasiões, o arquiteto brasileiro fez questão de ressaltar sua opinião sobre o que considerava a “mediocridade” da Bauhaus.

Assim como a Casa das Canoas, Brasília dificilmente poderia ser multiplicável, embora muito do que há em Brasília acabou sendo replicado pelo Brasil e mundo afora, inclusive por obra do próprio Niemeyer. Mas a concepção do Plano Piloto, não. E os comentadores do modernismo notam que o movimento, a não ser em raros casos, exemplo do trabalho com pré-moldados de João Filgueiras Lima, provocou uma mudança de padrão na construção de habitações populares dignas, mesmo a custo baixo. A superfície entreliçada dos cobogós, que revestem muitos dos primeiros prédios de Brasília, quase anteviu um futuro de moradias austeras, mas com identidade genuína, fundada na ideia de solidariedade coletiva, distante da repetição enfadonha dos conjuntos populares que afastaram o pessoal de baixa renda para zonas cada vez mais periféricas e desassistidas.

Mas isso não é motivo para tristeza. O refrão repetido nas festas do DF por gente moça e gente de cabeça branca continua projetando o sonho modernista: “O que foi prometido / ninguém prometeu / nem foi tempo perdido / somos tão jovens / tão jovens / tão jooveeens!”

Fonte: Agência Senado

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