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Nós, a humanidade, estamos prestes a realizar uma façanha e tanto. É provável que, em breve, viremos uma página da história do planeta, inaugurando um novo período geológico – o antropoceno. Não há o que comemorar, contudo. Se exercemos tal protagonismo é porque somos responsáveis por mudanças no ambiente que só podem ser definidas como dramáticas. São transformações tão extraordinárias que equivalem ao impacto de um imenso meteorito contra a superfície da Terra. No segundo semestre deste ano, um grupo de pesquisadores (90% geólogos) deve se reunir para apreciar o tema e, tudo indica, consagrar o novo marco. Lá estará o climatologista Carlos Nobre, de 65 anos. Ele é um dos cientistas brasileiros de maior renome global. Engenheiro pelo Instituto Tecnológico de Aeronáutica (ITA), doutor em meteorologia pelo Massachusetts Institute of Technology (MIT) e pós-doutor pela Universidade de Maryland (EUA), atuou por décadas no Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe). Seu nome está inexoravelmente ligado a pesquisas sobre a Amazônia e as mudanças climáticas em curso. A seguir, ele explica como a nossa (des)civilização atravessou a ponte rumo a essa nova,  e talvez um tanto sombria, era.

O que é o antropoceno?

O termo foi proposto na virada do século por Paul Crutzen, prêmio Nobel de Química em 1995. Esse período sucederia o atual holoceno, marcado por grande estabilidade climática. Foi ela que permitiu, por exemplo, o desenvolvimento da agricultura e a formação dos assentamentos humanos. Há muito tempo, principalmente ao longo do holoceno, nos tornamos uma força de transformação biológica. Modificamos as paisagens, as florestas, provocamos a extinção de espécies, domesticamos plantas e animas. Ainda assim, não tínhamos condições de alterar o planeta como um todo – por exemplo, o movimento das placas tectônicas, o vulcanismo ou o choque de um meteorito. Com o antropoceno, ou seja, a era geológica de dominância humana, isso muda.

Em que medida?

Nós nos tornamos uma força de transformação em escala geológica e não apenas biológica. Isso quer dizer que alteramos o planeta, o seu meio físico. E deixamos uma série de assinaturas dessa mudança no registro de sedimentos. Elas estão no Ártico, na Antártica, na Groenlândia, no fundo dos oceanos Pacífico e Atlântico. Hoje, as marcas, as pegadas da nossa civilização industrial, altamente intensiva em recursos naturais e energia, estão presentes em cada metro quadrado do planeta.

Quais são essas pegadas?

Há muitas. Os elementos radioativos surgiram na primeira explosão atômica, em 1945. Antes disso, não existiam. Nada semelhante havia ocorrido nos 4,5 bilhões de anos do planeta. Essa é uma marca absolutamente humana. No fundo dos oceanos, há outro sinal, o plástico, que também não estava ali antes da intervenção humana. Ou seja, os registros de sedimentos estarão alterados.

E qual seria o marco do antropoceno?

Alguns geólogos defendem que ele começou no início da Revolução Industrial. Outros, no fim da Segunda Guerra. Existem os que querem retroceder 2 mil anos, até a metalurgia dos romanos, quando os sedimentos registraram os primeiros traços de chumbo. O debate continua, mas deve ser em algum momento do século 20, como o pós-guerra, quando a população e o uso da energia explodiram, a medicina avançou muito e a tecnologia nos ajudou a explorar os recursos naturais com alta intensidade. Foi aí que começamos a queimar combustível fóssil em grandes quantidades, provocando o aquecimento global. O número de pessoas vivendo na Terra e o uso de recursos cresceram exponencialmente. Aliás, a velocidade desses avanços provocou outro fenômeno, a “Grande Aceleração”.

O que é a “Grande Aceleração”?

No início do século passado, havia 2 bilhões de pessoas no planeta. No começo deste século, pouco mais de 6 bilhões. Hoje, consumimos 26 vezes mais energia per capita do que há cem anos. Não só transformamos o planeta como fizemos isso em uma velocidade impressionante. Na verdade, outra espécie já havia mudado o ambiente. As cianobactérias, as mesmas que deixam verde as águas de represas, surgiram nos oceanos há 3,6 bilhões de anos. Com a fotossíntese, elas diminuíram a concentração do gás carbônico na atmosfera, mas levaram 1,6 bilhão de anos para fazer isso. Pode-se dizer que estamos fazendo algo com proporções globais similares em somente 200 anos.

É um recorde triste. E o que falta para a formalização do antropoceno?

Isso deve ser definido em uma reunião anual de cientistas, a maioria geólogos, no segundo semestre deste ano. Ela indicará se os registros existentes são suficientes para indicar o início de um novo período geológico. Pode ser um momento histórico, e eu espero estar lá.

Em 200 anos estamos provocando mudanças no ambiente que, sem a ação humana, levariam mais de 1 bilhão de anos para ocorrer
O aquecimento global é o grande risco dessa nova era?

É um deles. Na verdade, estamos cutucando a onça com vara curta em muitas dimensões.  Hoje, excedemos em dez vezes a taxa natural de extinção das espécies. A agravante é que, se o planeta não parar de aquecer, vamos ultrapassar essa taxa em mil vezes. É um cataclismo. O planeta já passou por cinco grandes extinções de espécies. Na última delas, 65 milhões de anos atrás, um meteorito caiu sobre a Terra. Ele levantou uma nuvem imensa de poeira que barrou a luz solar. Nessa época, 65% das espécies desapareceram. E isso aconteceu ao longo de dezenas a centenas de milhares de anos. Os dinossauros desapareceram assim. Uma grande perturbação vai quebrando as relações ecológicas a ponto de eliminar as condições de permanência de inúmeras espécies.

Em que proporção o aquecimento pode comprometer a biodiversidade?

Com cinco ou seis graus de aquecimento. poderão ser eliminadas 40% das espécies. Com 12 graus, 80%. A taxa de extinção, aumentada por ações humanas, já é chamada de a sexta grande extinção de espécies.

Temos chances de não chegar a esse ponto?

Sim, e são plenas. Elevar a temperatura do planeta em apenas dois graus, como preconiza o acordo de Paris, será muito difícil. Mas é possível não chegar a 7, 8 ou 10 graus. Para isso, precisamos de uma ação imediata: abandonar em definitivo a era fóssil, partindo para a geração de energia renovável sem emissão de gases. Isso além de desenvolver uma agricultura muito mais sustentável. A tecnologia para tudo isso está pronta. Precisamos de determinação política e mudanças comportamentais.

Quais mudanças?

São poucas as pessoas que têm consciência de abastecer o carro com bioetanol, embora o impacto desse tipo de combustível no ambiente seja equivalente a um oitavo do da gasolina. Precisamos de uma grande mudança de comportamento. E ela não depende apenas da determinação de governos. A indústria e a agricultura devem produzir de forma diferente. O consumidor, que tem papel central no fluxo da economia, terá de ser muito mais consciente. Para enfrentar nosso maior desafio, que são os combustíveis fósseis, teremos de tomar uma decisão como humanidade.

Qual?

Vamos ter de deixar a maior parte do petróleo e do gás natural enterrados. Quando tirarmos essas substâncias, elas deverão ser usadas em produtos de altíssimo valor agregado, como fertilizantes e alguns tipos de plástico. A velocidade com que vamos descarbonizar o sistema econômico determinará o quanto o planeta vai aquecer.

Quão rápido esse ritmo tem de ser?

Para aumentar a temperatura do planeta em dois graus, temos de reduzir as emissões de gases do efeito estufa em 70%, 80% até 2050. Mas, para chegar a isso, a queda no sistema de energia tem de ser maior. Isso porque é mais difícil produzir mudanças de impacto em outras áreas, como a agricultura. Então, a descarbonização na energia tem de ficar acima de 90%, quase 100%. Além disso, vamos ter de zerar as emissões até 2050 e fazer com que sejam negativas, ou seja, captem carbono, no século 22. É um esforço gigantesco, que depende de uma nova consciência.

O senhor já disse que essas metas incluem zerar o desmatamento em todo o planeta até 2050. Mas no Brasil essas taxas estão aumentando.

É muito preocupante. O Brasil havia assumido um enorme protagonismo. Costumo dizer que, durante muito tempo, a melhor notícia sobre mudanças climáticas era a redução, ano após ano, do desmatamento tropical. E o Brasil puxava essa fila.  Em 2009, o presidente Lula foi aplaudido de pé em Copenhagen, ao assumir o compromisso de reduzir o desmatamento. Isso virou lei em 2010. Ele seria reduzido a 3,6 mil quilômetros quadrados até 2020. Estamos a três anos dessa meta e a tendência é de aumento. Chegamos a 5 mil dois anos atrás e, agora, a 7,9 mil.

Por que houve esse aumento?

Só temos hipóteses. E isso é perigoso, porque, no passado, muitas delas se mostraram equivocadas. Ainda assim, fala-se, por exemplo, que a aprovação do Código Florestal, mais brando do que o esperado por ambientalistas, teria “flexibilizado” o combate ao desmatamento. A crise estaria ainda comprometendo a ação da Polícia Federal e do Ibama nas áreas de floresta, mas ambas as instituições negam isso. De qualquer forma, em 2015 o Brasil assumiu o compromisso de zerar o desmatamento até 2030 e não só na Amazônia, mas em todos os biomas, como no Cerrado. O problema é que 2030 está logo aí, na próxima esquina.

tecnologia;entrevista;meio ambiente;Carlos Nobre;climatologista (Foto: Rogério Albuquerque)
Fonte: Época