Doze estados do Brasil fizeram menos de dez abortos legais ao longo de todo o primeiro semestre de 2020, de acordo com levantamento feito com dados do Sistema Único de Saúde (SUS). Sergipe e Amapá, por exemplo, registraram, cada um, apenas um aborto legal de janeiro a junho deste ano (veja mais no mapa abaixo). Nesse período, o Brasil fez 1.024 interrupções de gravidez previstas em lei.

Tocantins está dentre os estados com menor número de abortos legais este ano são 2 abortos legais e 286 estupros

Especialistas  avaliam que esse número é baixo e que, na prática, não há serviço de aborto legal nos estados para os casos previstos em lei: gravidez decorrente de um estupro, risco à vida da gestante e anencefalia do feto.

A lei 12.845, de 2013, regulamentou o atendimento obrigatório e integral a pessoas em situação de violência sexual e concedeu todos os meios à gestante para interrupção da gravidez em decorrência de estupro. Pelo texto, não é necessário que a mulher apresente boletim de ocorrência, nem que faça exame de corpo de delito.

De acordo com a pesquisa Serviço de Aborto Legal no Brasil, que analisou o período de 2013 a 2015, mais de 90% dos abortos legais no país ocorrem em gestação resultante de estupro, seguido por anencefalia do feto (5%). Apenas 1% dos casos teve como justificativa o risco de vida para a gestante.

“Para os níveis de violência que a gente tem hoje no Brasil, que são muito, muito perversos com as mulheres, nós deveríamos ter um número muito maior de abortos legais. Não é possível que a gente tenha, depois de 80 anos de lei, um percentual tão pequeno de abortos legais em um país que é tão violento contra as mulheres”, diz o obstetra Jefferson Drezett, que implementou e coordenou por 24 anos o serviço de aborto legal do Hospital Pérola Byington, em São Paulo.

Portaria que obriga médicos a avisar polícia sobre pedidos de aborto legal por estupro

Na última sexta-feira (28), o Ministério da Saúde publicou uma portaria que obriga médicos a avisar polícia sobre pedidos de aborto legal por estupro. O documento inclui oferta para que a gestante veja imagens do feto, em ultrassonografia, e submete a vítima a um extenso questionário sobre o estupro, inclusive com questões a respeito do agressor. Para especialistas, a portaria viola direitos e dificulta ainda mais o acesso ao procedimento nos casos previstos pela lei.

A portaria foi publicada em meio à polêmica gerada pelo caso da menina de 10 anos que engravidou depois de ser estuprada pelo tio de 33 anos, no Espírito Santo, onde o hospital negou-se a fazer o aborto legal e precisou viajar até o Recife (PE) para interromper a gestação.

Gravidez é uma das consequências mais comuns do estupro no Brasil

Estudo realizado pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) mostra que a gravidez é uma das consequências mais comuns do estupro no Brasil: 7,1% dos casos notificados em 2011 resultaram em gravidez da vítima.

A pesquisa mostra ainda que a proporção de vítimas que engravidam aumenta para 15% nos casos em que há penetração vaginal e a vítima tem entre 14 e 17 anos, grupo que utiliza com menos frequência métodos anticoncepcionais de uso contínuo, como a pílula.

Senado e Câmara têm projetos com o objetivo de tornar a portaria sem efeito. Parlamentares contrários à medida do Ministério da Saúde também cogitam levar ao Supremo Tribunal Federal um pedido para que a portaria seja barrada.

O que diz o Ministério da Saúde

Em nota divulgada na semana passada, o Ministério da Saúde afirmou que as mudanças foram necessárias porque as regras vigentes estavam em desconformidade com a legislação.

Ainda segundo a pasta, um decreto da década de 1940 enquadra como contravenção a conduta de um profissional de saúde da administração pública que não comunicar crimes, como o estupro, à autoridade competente.

Números de abortos legais nos estados

 

De janeiro a junho deste ano, 12 estados fizeram menos de dez abortos legais no período, cinco deles menos de cinco interrupções previstas em lei e dois, Amapá e Sergipe, apenas uma cada:

  • Amapá – 1 aborto e 116 estupros
  • Sergipe – 1 aborto e 205 estupros
  • Tocantins – 2 abortos legais e 286 estupros
  • Rondônia – 2 abortos e 382 estupros
  • Alagoas – 2 abortos legais (o estado não informa dados de estupros no período)
  • Acre – 5 abortos legais e 101 estupros
  • Mato Grosso – 5 abortos e 205 estupros
  • Mato Grosso do Sul – 7 abortos e 1.327 estupros
  • Maranhão – 8 abortos (o estado não informa dados de estupros no período)
  • Roraima – 8 abortos (o estado não informa dados de estupros no período)
  • Rio Grande do Norte – 9 abortos e 1.403 estupros
  • Espírito Santo – 9 abortos e 442 estupros (veja mapa acima)

 

“Existem estados brasileiros que não têm nenhum serviço de aborto legal no estado inteiro, e existem outros que dizem que têm, mas acontece o que aconteceu no Espírito Santo, o atendimento não chega”, diz Drezett.

“Não é justo que uma cidadã tenha que ser mandada para outro estado ou outra cidade porque um lugar cumpre a lei e o outro, não. As secretarias de saúde tiveram 80 anos para se preparar”, completa

‘Tortura e violações’

 

A psicóloga Daniela Pedroso, que há 23 anos atua com meninas e mulheres vítimas de violência sexual, avalia que a “a nova portaria degrada a autonomia de meninas e mulheres, principalmente quando oferece a elas a possibilidade de visualização do feto ou embrião por meio de ultrassonografia, o que pode ser comparado a situações de tortura”.

“Essa gestação é entendida como a concretização do estupro, sendo vista como segunda violência. Outro ponto que avilta a dignidade de meninas e mulheres e contribui para acirrar o dano psicológico é falar acerca do risco de vida conforme a idade gestacional em que as pacientes se encontram”, avalia.

 

“Pode-se afirmar que existem riscos que são inerentes a qualquer procedimento cirúrgico, e não exclusivos ao abortamento previsto em lei, e tal colocação parece ter como objetivo induzir a paciente a desistir do procedimento”, completa Pedroso.

Para a pesquisadora, a nova norma do Ministério da Saúde “vai contra os tratados internacionais dos quais o Brasil é signatário, além de, novamente, tentar inviabilizar os direitos sexuais e direitos reprodutivos de nós mulheres”.

Em evento virtual realizado nesta sexta-feira (28) para debater a nova norma, o obstetra Jefferson Drezett apontou que a exigência de comunicação à polícia usa o falso argumento de proteção para, na verdade, violar direitos e duvidar da palavra da mulher que precisa passar por tal procedimento.

“Não vejo nenhum sentido nessa portaria. O que fará a polícia? Então a gente vai ligar 20 vezes por dia para a polícia, como era o caso no Pérola Byington?”, questionou Drezett.

 

‘Inconstitucional e ilegal’

 

Defensores públicos também se reuniram para pedir a revogação da portaria que, segundo eles, é inconstitucional. A Comissão Especial de Proteção e Defesa dos Direitos da Mulher do Colégio Nacional de Defensores Públicos (Condege) enviou uma nota técnica ao Congresso Nacional e ao Ministério da Saúde pedindo a anulação da nova norma nesta segunda-feira (31).

Na nota, os defensores argumentam que a nova portaria constitui uma “afronta ao direito ao sigilo entre o profissional de saúde e suas pacientes, violando, em consequência, os direitos fundamentais à privacidade, confidencialidade e intimidade”.

“Concluímos pela inconstitucionalidade, inconvencionalidade e ilegalidade da portaria e, consequentemente, pela sua não aplicabilidade diante da nulidade absoluta, recomendando a sua imediata revogação”, diz a nota do Condege.

De acordo com a defensora Paula Machado, coordenadora do Núcleo Especializado de Promoção dos Direitos da Mulher (NUDEM) da Defensoria Pública de São Paulo, a normativa, além de inconstitucional e ilegal, usa de forma enviesada um documento da Organização Mundial de Saúde (OMS) que trata da questão sobre o risco à vida da mulher.

Entretanto, o documento da OMS aponta que risco de vida a partir de um abortamento induzido em condições seguras “é menor do que tomar uma injeção de penicilina ou levar uma gravidez a termo.”

“A grande maioria das mulheres que têm um abortamento induzido adequadamente não sofrerá nenhum tipo de sequelas a longo prazo para sua saúde geral e reprodutiva (113-115). Em tempos modernos, o risco de vida a partir de um abortamento induzido em condições seguras é menor do que tomar uma injeção de penicilina (116) ou levar uma gravidez a termo (1)”, diz o documento da OMS.

“A informação [portaria] foi dada com um viés exatamente para desmotivar que se faça”, alerta Paula.

 

“Fica um questionamento do porquê esse detalhamento de dizer que a pessoa corre risco de vida? Na verdade, a não realização da intervenção é que levará o risco a meninas, adolescentes e mulheres”, aponta Paula.

A defensora ainda destaca a necessidade de criação de mecanismos que possam garantir atendimento humanizado e acesso ao que está previsto em lei.

“Essas normativas devem sempre caminhar no sentido de facilitar o acesso a esse direito, que conforme estudos e pesquisas, nós vemos hoje que apesar de ser um direito previsto no Código Penal de 1940, é um direito que não é garantido de forma democrática, de forma igualitária a todas as meninas, adolescentes e mulheres”, diz

“Por isso, as normativas devem caminhar no sentido de ampliar o acesso, ampliar o acesso inclusive à informação dos serviços de referência, de quais são as hipóteses de interrupção legal, e não trazendo requisitos que não estão previstos na lei ou fases e procedimentos que tornem esse procedimento que é de extrema vulnerabilidade para essa mulher”, completa.

O que a normativa faz, porém, é justamente o contrário: distorce uma questão de saúde pública e distancia ainda mais as mulheres ao tornar o processo policialesco, de investigação.

“Sob o risco ainda de muitas meninas, adolescentes e mulheres desistirem de procurar a saúde por conta dessas novas formalidades e também muitas vidas de mulheres serem perdidas porque a saúde deixará, então, de ser um espaço de confiança para esse público”, completa Paula Machado.

 

SUS realiza procedimentos pós-aborto incompleto

 

No primeiro semestre de 2020, o número de mulheres atendidas em todo o país pelo Sistema Único de Saúde (SUS) em razão de abortos malsucedidos – tenham sido provocados ou espontâneos – foi 79 vezes maior que o de interrupções de gravidez previstas pela lei, como revelado

De janeiro a junho, o SUS fez 1.024 abortos legais em todo o Brasil. No mesmo período, foram 80.948 curetagens e aspirações, processos necessários para limpeza do útero após um aborto incompleto. Esses dois procedimentos são mais frequentes quando a interrupção da gravidez é provocada, ou seja: a necessidade é menor no caso de abortos espontâneos.

Para especialistas em saúde da mulher ouvidos , essa discrepância também indica que as mulheres não têm acesso adequado ao aborto previsto na legislação e que o próprio sistema hospitalar arca com os custos de procedimentos pós-abortos clandestinos.

Fonte: G1