
UMA ESTRATÉGIA FEITA PARA DURAR
Até meados da década de 90, a paisagem da zona rural de Abaetetuba, no nordeste do Pará, era tomada por pastagens degradadas. O cenário resultava das queimadas entre as safras de cana-de-açúcar e outras lavouras de ciclo curto que dominaram a região por anos. Nos últimos cinco anos, porém, nenhum foco de incêndio foi registrado nessa região. O fortalecimento da demanda por alimentos feitos com açaí tornou o desmatamento um mau negócio na última década. Mas não só. Espécies como a andiroba, o murumuru e a ucuuba — até então cortadas para a venda de madeira — também passaram a ter um valor de mercado inédito para os produtores locais. A razão: os óleos e as manteigas extraídos dos frutos e das sementes dessas árvores. Para ganhar dinheiro, foi preciso conservar o que estava de pé — e começar a reflorestar o que havia sido derrubado.

Boa parte da matéria-prima extraída ali vai para as linhas de produção da fabricante de cosméticos Natura, que havia quase uma década estudava as características dessas espécies em busca de fragrâncias e ativos hidratantes para a pele e para os cabelos. Centenas de famílias de fruticultores de Abaetetuba são fornecedoras da companhia desde 2006. “Entrar nesse mercado nos deu mais segurança financeira e profissionalizou nossa gestão”, afirma Raimundo Brito, presidente da Coperfruta, cooperativa parceira da Natura no Pará. Para algumas dessas famílias, a renda anual mais que dobrou — de 12.000 para 28.000 reais.
Hoje, a Coperfruta tem uma usina própria de beneficiamento de óleos e manteigas, resultado de um investimento direto da Natura em 2008. A estrutura viabilizou uma produção diária de 300 quilos, capacidade de processamento quase quatro vezes maior do que a registrada quando esses agricultores viviam somente da produção de açaí. O salto de produtividade, alcançado no ano passado, mira atender uma demanda nova, posta também pela Natura: o óleo de patauá, fruto do patauazeiro, palmeira amazônica que chega a 25 metros de altura e demora até 15 anos para frutificar por completo.
Mais conhecido como azeite amazônico, o ingrediente é tradicionalmente usado para cozinhar e está espalhado por várias partes do bioma, das margens do Rio Tocantins às imediações da Reserva Extrativista Chico Mendes, no sul do Acre. Foi lá que, em 2007, com base em depoimentos de mulheres que usavam o óleo para tratar os cabelos, que os pesquisadores da Natura começaram a investigar as propriedades da substância. Em setembro deste ano, ele foi incorporado ao portfólio de produtos para cabelos. O sucesso da linha superou a expectativa — e a safra deste ano não dará conta da demanda.

Tal descompasso entre o ritmo de lançamento de produtos e o volume necessário para atender clientes seria motivo de preocupação para muitas empresas. Não é assim no caso da Natura. A companhia define regras claras de exploração para seus fornecedores. Elas levam em conta os diferentes ciclos da biodiversidade — e, com base neles, limites são estabelecidos para garantir a disponibilidade da matéria-prima no longo prazo. É o caso da colheita da ucuuba, árvore sob risco de extinção. Só 60% das sementes podem ser recolhidas. O restante é deixado para que os animais espalhem naturalmente. “Quando todo mundo falava em just in time, partimos para o season in time”, afirma Pedro Passos, um dos três sócios-fundadores da Natura, em referência à complexidade do modelo de negócios, dependente da sazonalidade da matéria-prima (veja entrevista na pág. 198).

A inserção na floresta amazônica começou nos anos 2000 com o lançamento da linha Ekos. Na época, a compra de óleos e manteigas de castanha e andiroba de quatro comunidades extrativistas era indireta. Por meio de compradores intermediários, a empresa acabava se blindando da desorganização das cooperativas. A dificuldade dos ribeirinhos de produzir em ciclos bem delimitados e de cumprir contratos era agravada pela rotina de desmatamento ilegal, que na época atingiu seu ápice histórico no bioma. A definição do preço das matérias-primas também era um impasse, já que não havia padrões claros para o uso industrial daquelas substâncias — nem para estabelecer um preço para o acesso das empresas ao conhecimento tradicional dessas comunidades, comumente carentes de serviços básicos. “Percebemos que era preciso ter um canal direto com essas pessoas para entender melhor a floresta, profissionalizar as cadeias produtivas e ter impacto social positivo”, afirma João Paulo Ferreira, presidente da Natura.

A opção pelo relacionamento estreito dá mais trabalho, sem dúvida. Mas também compensa. Nos últimos seis anos, desde que iniciou a empreitada de formar fornecedores locais, a Natura movimentou 1,1 bilhão de reais na região amazônica, um dos fatores decisivos para que fosse apontada como A Empresa Sustentável do Ano pelo Guia EXAME de Sustentabilidade 2017. É inédito, nos dez anos em que o guia escolhe a melhor entre as melhores, que uma companhia leve o prêmio pela segunda vez. No caso da Natura, a soma de investimentos na Amazônia inclui a ampliação da capacidade produtiva das comunidades, pesquisas sobre a biodiversidade local, a reforma de escolas rurais, a compra das matérias-primas e a construção de uma fábrica no Pará, a primeira fora de São Paulo.
Hoje, 375 pessoas dedicam-se diretamente ao tema nas -áreas de sustentabilidade, suprimentos, inovação e produção industrial, sobretudo na gerência de relacionamento e abastecimento da sociobiodiversidade, constituída especialmente para isso em 2012. A partir de uma pequena rede de quatro comunidades, a Natura ampliou seu alcance para 28 municípios — um total de 2.841 famílias e mais de 8.000 pessoas nos estados de Amazonas, Amapá, Rondônia, Pará e Maranhão (veja quadro ao lado). Boa parte da matéria-prima é processada no Ecoparque, área de 173 hectares construída em 2014 às margens da rodovia PA-391, no município de Benevides, para funcionar como um condomínio de empresas que, em simbiose, poderão aproveitar resíduos industriais entre si, num ciclo fechado.
Até agora, apenas a Natura e a alemã Symrise, fabricante de fragrâncias, estão instaladas, ainda que a região seja fornecedora de 25 empresas que processam ingredientes naturais. Nos últimos três anos, a Natura transferiu para Benevides 80% de sua produção de sabonetes e 98% da mão de obra empregada é local. “Desfizemos a ideia de que a floresta é apenas fonte de recursos e de que a riqueza deve ser processada fora dela”, diz Luciana Villa Nova, gerente de sustentabilidade da Natura. Hoje, 20% de todos os insumos comprados pela Natura vêm da Amazônia. A meta é chegar a 2020 com uma fatia de 30% a partir da produção de 10 000 famílias. “A Natura não vai mudar a economia da Amazônia sozinha, mas está mostrando um caminho”, afirma Carlos Nobre, climatologista e conselheiro independente da Natura para a região.


