Álbum de estreia dançante e ensolarado entrega canções com muito carisma, diversidade rítmica e referências nas musicalidades das regiões norte e nordeste do país.

Se eu falasse para vocês de uma banda puxada por uma mulher de voz doce, que mistura ritmos, arranjos e influências de forma sagaz, com interpretações tanto pops, quanto experimentais e bem humoradas, qual banda viria à sua mente? Mutantes? Pato Fu? Quem sabe, os Novos Baianos com sua Baby Consuelo?

Quem transita pelo curto circuito cultural (desculpa a ambiguidade!) de Palmas – Tocantins nos últimos 5 ou 6 anos, possivelmente teria um palpite mais certeiro: Boca de Cantora e os Piabas. A banda de Vera, Ítalo Cometa, Guido Jargões e Rapha Brito vem trazendo, no finalzinho deste tenso 2021, um álbum autoral para lavar de calor e de suor as ziquiziras do corpo. Um som dançante, cantante, apaixonado, bem-humorado e repleto da presença luxuosa das ensolaradas influências nortistas que permeiam o disco e fazem toda a diferença.O surgimento de Boca de Cantora e os Piabas na cena palmense não passou batido em 2015.

Nos bares da cidade sempre haviam ouvidos e olhos muito atentos à voz ao mesmo tempo delicada e cortante de Vera com sua irreprimível cabeleira. As influências cheias de ritmo e sensualidade que Ítalo, Rapha e Ícaro (ex-integrante e um dos compositores do disco) entregavam às interpretações também chamavam a atenção: cordas mais caribenhas e “guitarradas”, batidas mais dançantes e “bregueadas”, uma percussividade muito mais latina, nortista e nordestina do que os compassos de pop rock comumente praticados pelos barzinhos da cidade.

“Quero um som que pisque

Um som psiquê

Que me deixe tonto

Rodando, rodando Rodando, rodando”

O trechinho acima é de “Barulho Bagaço”, lançada em 2020 como o primeiro single do Boca de Cantora e Os Piabas (2021). Um trecho muito representativo do que o conjunto da obra carrega nesse debut da banda: um som que pisca, que tem a leveza de quem dança descalço, que bebe de referências regionais e psicodélicas mas nunca perde de vista o carisma e o apelo do pop.

“Flor do Sereno”, segunda faixa do disco, é um hit pronto e inconteste, que começa com o brilho da voz de Vera acompanhada de forma minimalista pelo teclado de Luan Crispim, para logo depois virar uma baiãozinho de guitarras sinuosas, marcadas pelo toque da zabumba de Mário Xará. “Icei” (uma das minhas preferidas!), começa com um pandeiro marcado e choro de cuíca pra se tornar um potente carimbó-guitarrado, todo permeado de arranjos emulados de teremim, a criticar as “normas puristas” que acorrentam os relacionamentos e narrar as loucuras docompositor para fazer “carinho na leoa com alma de passarim”.

A quarta faixa, “Música do Chico” é provavelmente um dos pontos mais altos do disco, inclusive na letra que, fazendo uso da ironia, critica os moralistas culturais de plantão. Novamente com uma quebra de expectativa entre a introdução e o desenvolvimento da canção, que vira um animado ska todo trabalhado nos arranjos de metais. Já consigo visualizar a platéia nos shows repetindo aos pulos o grudento refrão: “Pra que foco, se tem funk? Pra que foco se tem funk? Se tem funk… pra quê foco?”.

Se o disco entrega muita diversidade e camadas musicalmente, comandado pela produção do prolífico Guido Jargões – que também assina boa parte dos arranjos -, não deixa a desejar quando falamos das composições. Ícaro Tedesco assina uma parte inspirada das composições, mas o trabalho ainda conta com boas parcerias entre integrantes e parceiros da banda como a própria Vera, Ítalo Cometa e Luzo Cairo (da banda Em Agosto Chove). O resultado é um trabalho plural de ritmos e ideias, mas com a harmonia e unidade naturais de um grupo que certamente respirou, por muito tempo, dos mesmos ares e aspirações musicais.

“Contorço-me não é de hoje

Que sinto por dentro tamanha agonia

Iludo-me quero dar cabo

De certas coisas, que Ave Maria!

Não tem solução…”

(Condição – Boca de Cantora e os Piabas)

Boca de Cantora e os Piabas é um sopro, um mormaço daqueles da gente respirar fundo e acreditar que a solução é sim a arte, a inventividade, a liberdade e a coletividade – que proporcionou o surgimento deste álbum, desde o financiamento até o processo de produção e gravação. É, sem dúvida, um dos grandes lançamentos aqui das nossas paragens tocantinas, que nesses tempos pandêmicos, de 2019 para cá, tem evoluído em volume e qualidade de forma animadora!

Enquanto escrevo essa resenha, o disco acaba de ser lançado nas plataformas digitais e não se fala em outra coisa nas redes sociais locais. Com um som que tem qualidade e força suficientes para voar também para outras paragens, afirmo com tranquilidade que para o público caseiro e fiel da Boca de Cantora e os Piabas (no qual me incluo), o álbum de estreia deu tudo que a gente já conhecia e esperava (e mais um tanto!).

• Tácio Pimenta, 34, é jornalista, redator publicitário, frequentador de bares e entusiasta das poesias e canções