Embora as vacinas sejam aplicadas gratuitamente nos postos de saúde da rede pública, a imunização infantil vem caindo de forma vertiginosa no Brasil e hoje se encontra nos níveis mais baixos dos últimos 30 anos.
Em 2021, em torno de 60% das crianças foram vacinadas contra a hepatite B, o tétano, a difteria e a coqueluche. Contra a tuberculose e a paralisia infantil, perto de 70%. Contra o sarampo, a caxumba e a rubéola, o índice não chegou a 75%. A baixa adesão se repetiu em diversas outras vacinas.
Para que exista a proteção coletiva e o Brasil fique blindado contra as doenças, o recomendável é que entre 90% e 95% das crianças, no mínimo, estejam imunizadas.
A queda generalizada começou em 2015 e atingiu a pior marca em 2021. Até 2014, não havia resistência. Os pais prontamente atendiam às chamadas do Ministério da Saúde e levavam seus filhos aos postos. A cobertura vacinal costumava ficar acima dos 90%, por vezes alcançando os 100%.
Médicos das áreas de pediatria, infectologia, epidemiologia e saúde coletiva temem que, se esse quadro de baixa vacinação for mantido, o país poderá assistir a novas catástrofes sanitárias, com o ressurgimento de epidemias que eram comuns no passado. O infectologista José Cassio de Moraes, professor da Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa de São Paulo, alerta:
— Estamos brincando com fogo. Ao contrário do que muita gente acredita, essas doenças não são benignas. Elas são graves e, dependendo da situação, deixam sequelas e levam à morte.
A meningite e a caxumba, por exemplo, podem causar surdez. O sarampo pode retardar o crescimento e reduzir a capacidade mental. A difteria pode levar os rins à falência. A coqueluche pode provocar lesões cerebrais. Quando a mulher contrai a rubéola na gravidez, o bebê pode nascer com glaucoma, catarata e deformação cardíaca, entre outros problemas, além do risco de aborto.
Médico desde 1971, Moraes lembra que o Hospital das Clínicas de São Paulo teve antigamente um andar inteiro destinado à internação de pacientes com paralisia infantil que, para respirar e viver, dependiam dos chamados pulmões de aço. O Hospital Emílio Ribas, também em São Paulo, reservava dois ou três andares para o isolamento dos doentes de difteria.
— O que estamos vendo é a crônica de uma tragédia anunciada — ele acrescenta. — Precisamos agir rápido para que não andemos para trás e voltemos a ser aquele Brasil dos séculos 19 e 20, que era tomado pelas epidemias e mortes.
Os primeiros sinais dessa tragédia são concretos. Em 2016, o Brasil ganhou da Organização Pan-Americana da Saúde (Opas) o certificado de território livre do sarampo. Naquele momento, o país vinha registrando um ou outro caso importado da doença. Logo em seguida, no entanto, o sarampo voltou com força total. Entre 2018 e 2021, o Brasil contabilizou mais de 40 mil doentes, dos quais 40 morreram. A Opas acabou retirando o certificado em 2019.
Outra face do problema é o prejuízo dos cofres públicos e a perturbação da logística vacinal: diante da baixa procura, muitas vacinas são descartadas porque alcançam o prazo de validade sem terem sido aplicadas.
No início deste mês, a Secretaria de Saúde do Distrito Federal viu-se obrigada a momentaneamente ampliar a faixa etária da vacina contra o HPV (vírus que causa o câncer de colo de útero) para que os frascos não fossem para o lixo. Pelo Programa Nacional de Imunizações (PNI), devem vacinar-se apenas meninas de 9 a 14 anos e meninos de 9 a 11 anos. O Distrito Federal ampliou a faixa feminina para 45 anos e a masculina, para 26. Só assim, às vésperas de vencer, o estoque desencalhou.
A Agência Senado solicitou ao Ministério da Saúde informações e esclarecimentos a respeito da baixa cobertura vacinal no país, mas a pasta não respondeu.
Os especialistas apontam diversas causas para a queda da imunização infantil. Uma delas é, paradoxalmente, o próprio sucesso da vacinação em massa na fase anterior. O PNI foi criado pelo Ministério da Saúde em 1973 e logo se tornou referência internacional. Graças a ele, muitas doenças praticamente sumiram do Brasil. A paralisia infantil, especificamente, desapareceu por completo — o último caso no território nacional foi registrado em 1989, na Paraíba.
Por causa desse sucesso, os pais mais jovens não testemunharam as epidemias, sequelas e mortes tão comuns em outros tempos e podem ficar com a sensação de que essas enfermidades são inofensivas ou simplesmente não existem mais. Seria, portanto, perda de tempo vacinar os filhos.
É uma sensação falsa. As doenças podem aparecer a qualquer momento. A vizinha Venezuela, por exemplo, vem registrando vários casos de difteria nos últimos anos. A paralisia infantil acaba de ressurgir em Israel, que havia passado mais de 30 anos livre da enfermidade.
Outro motivo da baixa cobertura vacinal são os horários limitados de funcionamento de muitos postos de saúde, que normalmente ficam abertos apenas de segunda a sexta-feira — e no horário comercial. Isso impede que pais que trabalham o dia todo levem os filhos para se vacinar.
Os especialistas também citam a falta de campanhas educativas nos meios de comunicação. Eles lamentam que tenham ficado para trás os tempos em que o Zé Gotinha, personagem criado em 1986, era figurinha fácil nas TVs, nos jornais e nas revistas. Primeiramente voltado à prevenção da paralisia infantil, o mascote serviu depois, com sucesso, a outras campanhas.
Entre 2017 e 2021, o valor investido pelo governo federal na publicidade da vacinação sofreu um corte de 66%, passando de R$ 97 milhões para R$ 33 milhões, segundo dados do Ministério da Saúde obtidos pela agência Repórter Brasil por força da Lei de Acesso à Informação.
Os médicos dizem que a pandemia da covid-19 também prejudicou a vacinação infantil. Em primeiro lugar, porque boa parte da população praticou o distanciamento social e evitou sair de casa nos primeiros momentos da emergência sanitária. Diversos pais, assim, acharam mais prudente não levar os filhos aos postos de saúde, onde as famílias poderiam estar expostas ao coronavírus.
Em segundo lugar, porque os postos e hospitais direcionaram suas energias ao diagnóstico e tratamento das pessoas infectadas com a covid-19, deixando a vacinação de rotina em segundo plano.
Em terceiro lugar, porque a pandemia trouxe consigo uma avalanche de notícias falsas e informações distorcidas a respeito das recém-criadas vacinas contra o vírus da covid-19, o que acabou por minar a credibilidade de todas as demais vacinas.
Entre as mentiras mais propagadas, estavam a que alertava para um chip a ser implantado no organismo humano por meio dos imunizantes e outra que previa mudanças no DNA dos vacinados. Circularam lendas de que as pessoas ficariam magnetizadas, desmaiariam ou até morreriam após a inoculação. Ingenuamente, muitos brasileiros acreditaram na história de que as vacinas contra a nova doença haviam sido criadas rápido demais, sem rigor científico, e que todos os vacinados seriam, na verdade, usados como cobaias.
O pediatra e infectologista Renato Kfouri, um dos diretores da Sociedade Brasileira de Imunizações (SBIm), esclarece que não existe nenhum motivo plausível para que as pessoas tenham medo de se vacinar, seja contra a covid, seja contra qualquer outra doença:
— No caso da covid-19, a tecnologia da vacina vinha sendo desenvolvida havia mais de uma década, desde o surgimento de outros coronavírus, e foi acelerada em função da pandemia, contando com um volume de investimentos financeiros sem precedentes. Nunca se pulou nenhuma etapa das pesquisas nem se abriu mão da segurança e da eficácia, que são requisitos essenciais para o licenciamento. Mais de 80% da população mundial já tomou pelo menos a primeira dose. Nunca se vacinou tanta gente no planeta quanto agora. O atual sucesso na redução da pandemia confirma a segurança e a eficácia da vacina.
O médico sanitarista Nésio Fernandes de Medeiros Junior, que é secretário estadual de Saúde do Espírito Santo e presidente do Conselho Nacional dos Secretários de Saúde (Conass), diz que as fake news são criadas e disseminadas principalmente por grupos ideológicos que se fortalecem politicamente com a desconfiança generalizada:
— Esses grupos criam polêmica em torno de temas que nunca foram polêmicos. A população nunca se preocupou em saber se a vacina é de vírus inativado ou vírus atenuado, se é de vetor viral replicante ou não replicante, qual é o país de origem da empresa fabricante. Essas polêmicas artificiais criam dúvidas, insegurança e medo. A desinformação, que se espalha muito rapidamente pelas redes sociais, cria militância e mobilização, transformando os seguidores de certos líderes políticos e religiosos em propagandistas de suas causas.
Há ainda uma quarta causa para a queda da vacinação de rotina durante a pandemia. Em diversas ocasiões, o governo federal agiu contra as vacinas da covid-19. O presidente Jair Bolsonaro disse que os imunizantes poderiam causar “morte, invalidez, anomalia” e que os vacinados poderiam virar jacaré ou contrair o vírus da aids. Também afirmou que, em nome da liberdade, ninguém deveria ser a obrigado a se vacinar. Em outra ocasião, declarou que a suspensão dos testes clínicos de uma vacina representava uma vitória política sua.
O ministro da Saúde, Marcelo Queiroga, lançou uma campanha informando que os pais poderiam escolher se queriam vacinar suas crianças ou não. A ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, Damares Alves, abriu o Disque 100 para receber queixas de pessoas que se sentiam discriminadas por não estarem vacinadas contra a covid-19. A missão original do serviço é receber denúncias de violação dos direitos humanos.
As falhas do governo federal no combate à pandemia motivaram o Senado a criar no ano passado a CPI da Covid. A vacina foi um tema central da investigação.
Embora a vacinação das crianças de 5 a 11 anos contra a covid-19 tenha iniciado em janeiro deste ano, até o momento somente 60% desse grupo tomou a primeira dose e meros 30% já têm o esquema vacinal completo.
— Esse assunto precisa ser descontaminado de política e ideologia, para que a população volte a ter confiança na vacina. É uma questão técnica de saúde pública — continua Medeiros Junior, do Conass. — Infelizmente, porém, a cada semana ou a cada duas semanas surge uma polêmica infundada nova, levantada justamente por quem deveria estar trabalhando para mobilizar o país em torno de um produto farmacêutico que não tem outro fim a não ser preservar a saúde das pessoas e salvar vidas.
A baixa cobertura vacinal preocupa o Senado. O senador Marcelo Castro (MDB-PI), que é médico e foi ministro da Saúde em 2015 e 2016, também critica o governo federal por ter agido contra a vacinação:
— A desconfiança é um sentimento natural das pessoas. Quando ela é estimulada por agentes do próprio governo, como no caso da vacina da covid-19, pondo em dúvida a sua segurança, isso causa um estrago na proteção da saúde das pessoas. Quando difunde que a vacina não é segura e causa efeitos adversos, o governo faz uma propaganda informal que se alastra nas redes sociais, levando desinformação e confundindo as pessoas.
De acordo com Castro, o Sistema Único de Saúde (SUS) precisa retomar a publicidade da vacinação infantil, mas não apenas nas mídias tradicionais:
— As campanhas educativas devem dar-se também nas mídias digitais. O SUS, infelizmente, ainda não se preparou adequadamente para enfrentar as fake news, que têm um poder de disseminação muito maior, com uma capilaridade e uma velocidade impressionantes. A troca de informações pelas redes sociais são imediatas, constantes, sem filtros. As fake news precisam ser combatidas à altura. O Ministério da Saúde deve responder pela estratégia nacional e oferecer recursos para que os estados e os municípios também adotem programas específicos contra a desinformação.
Marcelo Castro foi o organizador de uma sessão especial no Senado no fim do ano passado em que especialistas e senadores discutiram o problema da baixa adesão às vacinas.
O senador Angelo Coronel (PSD-BA) apresentou um projeto de lei que transforma em crime a disseminação de notícias falsas sobre a eficácia das vacinas (PL 5.555/2020). Os condenados podem passar até oito anos na prisão. Se isso for feito por agente público, a pena máxima sobe para 16 anos. Também seriam considerados criminosas as pessoas que, numa situação de emergência de saúde pública, não se vacinassem ou não vacinassem seus filhos sem justa causa.
— O projeto é uma resposta ao que foi levantado pela CPI Mista das Fake News [iniciada em 2019] sobre perfis em redes sociais atuando para disseminar desinformação sobre as vacinas — explica Coronel, presidente da comissão. — Esse projeto é importante na conscientização das pessoas de que as vacinas são uma proteção coletiva e que os impactos da não imunização vão muito além de questões individuais. Afetam a sociedade de maneira geral.
Submetida a uma consulta pública no e-Cidadania (portal do Senado que permite a participação dos cidadãos), o projeto de Angelo Coronel recebeu uma quantidade de votos extraordinariamente elevada — quase 100 mil até o momento. Porém, apenas 9% são favoráveis à criminalização das fake news e dos negacionistas das vacinas. O senador afirma:
— Acredito que muitos dos que se manifestaram contra o projeto não leram o texto ou então votaram motivados justamente por disseminadores de fake news nas redes.
Outra solução passa pelos colégios. Os senadores Lucas Barreto (PSD-AP) e Wellington Fagundes (PL-MT) apresentaram projetos de lei que determinam que as escolas exijam dos pais no ato da matrícula a carteira de vacinação atualizada das crianças (PL 1.716/2019 e PL 5.542/2019, respectivamente). Alguns estados já fazem isso.
O senador Romário (PL-RJ), por sua vez, redigiu uma proposta que obriga os serviços de saúde a sempre analisar a caderneta de vacinação de todos os pacientes e aplicar os imunizantes atrasados (PL 5.094/2019). Isso ocorreria em consultas e hospitalizações, por exemplo. O relator do projeto, senador Paulo Paim (PT-RS), recomenda que a medida seja aprovada (veja vídeo abaixo).
Caso a caderneta de vacinação do filho esteja incompleta, os pais podem levá-lo ao posto de saúde a qualquer momento para que ele tome os imunizantes que faltam. Não há problema que mais de uma vacina seja aplicada ao mesmo tempo.
— A pior dor que uma família pode sofrer é ver um filho morrer ou ficar com sequelas em decorrência de alguma doença evitável pela vacina — afirma o médico Renato Kfouri, da Sociedade Brasileira de Imunizações. — Esse é um arrependimento que nós, médicos, não desejamos a nenhuma família.
Fonte: Agência Senado
Fonte: Agência Senado