O Brasil pode ganhar em breve o primeiro banco genético da planta Cannabis sativa. Esse é o objetivo de um projeto da Universidade Federal de Viçosa (UFV), em Minas Gerais, que aguarda apenas o parecer final da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) para dar início ao cultivo.

Com o maior conhecimento sobre a planta, e as suas diferentes variantes genéticas, os pesquisadores afirmam que será possível eventualmente selecionar as versões que têm maior potencial para o uso no Brasil, tanto na área médica, como em mais de 25 mil produtos que podem ser produzidos industrialmente a partir da Cannabis.

— Nós tivemos um primeiro projeto com 100 plantas, que já foi concluído com a caracterização de quatro variantes da planta. Agora estamos dando o passo maior para criar o banco genético e cultivar 5 mil plantas. O que queremos é entender a diversidade da espécie para selecionar variantes adaptadas ao clima do Brasil. Para saber, por exemplo, quanto de óleo cada uma consegue proporcionar — explica o agrônomo e coordenador do projeto, Derly Henriques, professor de recursos genéticos vegetais da UFV.

Ele conta que a iniciativa já foi aprovada por unanimidade na universidade e aguarda somente a resposta da Anvisa com os requerimentos para que o banco seja criado de uma forma segura. Os investimentos iniciais, feitos pela UFV e pela startup de pesquisa Cannabreed, já possibilitaram a construção de casas de vegetação e laboratórios.

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— Pelo parecer inicial da Anvisa, o nosso processo está bem substanciado. Se tudo der certo, acredito que por volta de quatro anos já tenhamos informações de plantas bastante seguras. Vai ser o primeiro banco na América Latina. Até existem registros anteriores à proibição do cultivo no Brasil, mas o material foi incinerado — explica Derly.

Ele conta que a Cannabis sativa, originária da região do Tibet, na Ásia, se espalhou pelo mundo ao longo dos aproximadamente 10 mil anos que está em contato com a espécie humana, por isso há tanta diversidade genética. Nesse primeiro momento, a ideia é que o banco forneça informações úteis para outros centros que trabalham com a planta dentro de protocolos de pesquisa.

— A Cannabis passa por essa reputação de ser uma planta proibida, mas é preciso deixar os pesquisadores a estudarem, entender formas pelas quais pode ser utilizada. Nos Estados Unidos, por exemplo, diversos institutos tinham liberdade para estudá-la quando ainda era proibida e, quando liberaram para o uso medicinal, já entraram no mercado com uma série de plantas adaptadas (ao país). No Brasil, o grande problema ainda é a questão legal. Mas montamos um processo longo, aprofundado, que envolve uma grande burocracia e responsabilidade — afirma.

Desde 1938, o cultivo da Cannabis sativa no Brasil, mesmo para fins medicinais, é proibido. A longo prazo, porém, a expectativa é que o debate avance e um cultivo, ao menos para a produção de medicamentos, passe a ser uma realidade – assim como já é em países vizinhos, caso da Argentina e do Uruguai.

Melhoramento genético da Cannabis

 

Nesse contexto, outras iniciativas já buscam criar versões aprimoradas da Cannabis, que possam, por exemplo, ter um crescimento mais rápido e gerar uma maior concentração do canabidiol (CBD), principal substância utilizada com fins terapêuticos.

Sérgio Rocha, doutorando em Fitotecnia na UFV e diretor da ADWA Cannabis, startup voltada para o desenvolvimento de novas variantes da planta, conta que, em parceria com a universidade, já criaram formulações que também têm baixa concentração do tetrahidrocanabinol (THC), composto que em doses maiores promove o efeito psicoativo.

— Um dos benefícios do banco genético vai ser justamente armazenar as informações para que os programas de melhoramento genético como o nosso tenham acesso e consigam desenvolver variedades melhores. Hoje, por exemplo, nós já conseguimos formulações que produzem 25% a mais de flores, que em apenas 60 dias já estão em ponto de colheita e que conseguem ser cultivadas em diversos territórios brasileiros. Temos variedades com baixa concentração de THC mesmo em altas temperaturas, que costumam estimular a produção da substância, e versões com concentrações diferentes de CBD. É uma vantagem — explica.

Ele cita que, em menos de uma década, o cenário do uso da Cannabis para fins não recreativos já avançou muito no Brasil. Mas diz que os próximos passos para oferecer produtos melhores, e fabricados no país, passam pela permissão do cultivo. Hoje a grande maioria dos remédios, mesmo os disponíveis em farmácias, são importados devido à proibição.

— Quando começamos nosso trabalho, entramos com uma ação na justiça e fomos a primeira empresa a ser autorizada a cultivar em todo o território nacional. Mas ainda é muito restritivo, muito difícil, mesmo para pesquisa. Existe um projeto de lei, que é o que temos de mais avançado no Congresso, que regulamenta o plantio para todos os usos que não sejam recreativos, como na parte medicinal, de cosmético, industrial (PL 399/2015). Sem sombra de dúvidas é algo muito importante — diz.

Impacto na Cannabis medicinal

 

Em relação à área medicinal, Derly acrescenta que identificar as diferentes variantes da planta mais adaptadas ao Brasil permitirá oferecer produtos melhores e feitos de forma específica para a população do país.

— Essa planta tem uma interação com o ambiente muito forte. Em cada lugar, pode gerar diferentes quantidades de óleo, com diferentes composições e concentrações. Com o mapeamento genético, podemos alimentar a ciência nacional, principalmente de institutos que trabalham com o desenvolvimento de medicamentos, para que tenhamos estudos com combinações distintas de canabinoides. Vamos poder desenvolver remédios específicos para nós brasileiros — defende.

A chamada cannabis medicinal é o uso terapêutico do canabidiol (CBD) e do tetrahidrocanabinol (THC), duas das cerca de 500 substâncias produzidas pela Cannabis sativa. Embora o THC seja responsável pelo efeito psicoativo usado nas drogas ilícitas, isso ocorre apenas em quantidades superiores às autorizadas pela Anvisa nos fármacos, um teor máximo de 0,2%.

Os compostos não conseguem curar doenças, mas muitos estudos já comprovaram a eficácia para aliviar e controlar os sintomas de diversos diagnósticos, diz o diretor da Associação Pan-Americana de Medicina Canabinoide (APMC), o médico Guilherme Marques:

— Hoje, a cannabis medicinal é indicada com alto nível de evidência para o tratamento de quatro quadros: esclerose tuberosa, doença de Lennox–Gastaut e doença de Dravet (síndromes que causam epilepsia infantil) e dor crônica. Não são os únicos usados na prática clínica, nós vemos efeitos para pessoas com ansiedade, insônia e outros tipos de dores. Mas é um produto que tem contraindicações, não é uma panaceia, então precisa de um cuidado.

As evidências são fortes também para o alívio de sintomas de náuseas e vômitos provocados pelo tratamento do câncer, de espasticidade – aumento involuntário da contração muscular característico da esclerose múltipla – e para tratar distúrbios do sono.

Marques explica que isso acontece porque os compostos se ligam a receptores de um sistema do corpo chamado de endocanabinoide. O próprio organismo produz substâncias que interagem com esse sistema, os canabinoides endógenos. A anandamida, por exemplo, é uma das mais estudadas e é liberada durante o exercício físico.

— Nós usamos esses insumos da planta Cannabis porque eles atuam com uma sinergia importante nesse sistema. É uma fonte boa e segura, quando regida com todos os critérios farmacológicos. A ativação desse sistema endocanabinoide regulariza algumas reações do nosso organismo, proporcionando um equilíbrio — diz o diretor da APMC.

Fonte – Agência O Globo via globo.com