Por Adão Francisco de Oliveira
Um dos conceitos mais difíceis da história de se definir com precisão é o de democracia. Aliás, não apenas o conceito, mas também a sua experiência concreta, histórica. Ao longo dos tempos várias sociedades, desde a antiguidade, experimentam formas de organização política, social e econômica que possuem características democráticas, mas que no conjunto de sua organização são refutadas por outras sociedades que também reivindicam a condição democrática.
Nem sempre uma sociedade com certa experiência democrática se reconhece enquanto tal. É o caso dos Vikings durante a Idade Média. Para estes povos, as tomadas de decisão se davam em assembleia geral em que todos os integrantes da sociedade tinham o direito de participar, reunindo homens e mulheres, adultos e idosos, com votos com peso iguais. A decisão da maioria era a válida para todos. Por outro lado, a Grécia Antiga, conhecida como a mãe da democracia, nunca foi tão democrática assim. Esta sociedade instituiu muito cedo um sistema eleitoral que permitia a participação de, além da velha nobreza proprietária de terras, também os comerciantes enriquecidos. Contudo, os trabalhadores livres e escravos não tinham o direito de votar e nem de serem votados.
Esses exemplos são interessantes para se perceber o quão complexo são o conceito e a experiência histórica da democracia. Hoje, em nossos tempos, várias nações no mundo se autoproclamam democráticas, organizando sistemas políticos e econômicos muito diferentes entre si. Para se ter uma ideia clara sobre isso vamos pegar dois exemplos: o dos EUA e o do Brasil.
Há muita gente enganada que acredita que a democracia dos EUA é uma das melhores, senão a melhor, democracia do mundo. Ledo engano. Do ponto de vista político, o sistema eleitoral norte-americano é baseado em eleições indiretas. Isso quer dizer que o eleitor não escolhe diretamente o presidente; escolhe um colegiado que tem a missão de escolher o presidente. Ao mesmo tempo, sufoca a existência de outros partidos para além dos tradicionais Democratas e Republicanos, não permitindo melhores e maiores opções ao eleitor. Esse modelo eleitoral foi implantado aqui no Brasil durante a Ditadura Militar.
Contrariamente aos EUA, o sistema eleitoral brasileiro garante o pleno direito da organização multipartidária sob determinados critérios, ampliando a possibilidade de escolhas ao eleitor. Não longe disso, também permite que cada pessoa apta a votar possa escolher diretamente o seu candidato a presidente, sem que haja um filtro para definir em última instância o seu voto. Além disso, com base na Constituição de 1988, outros dispositivos foram instituídos como direitos que permitem o acesso da população na definição das políticas públicas, tais como os conselhos gestores de políticas públicas, a prerrogativa do projeto de lei de iniciativa popular, o referendo e as conferências populares. Além disso, várias gestões ainda ousam aplicar o orçamento participativo como forma da população expressar diretamente, em assembleias, as suas opções de políticas a serem implementadas.
Se o leitor neste momento me questionasse, enquanto um cientista social que sou, qual desses dois modelos é mais democrático, eu diria sem qualquer sombra de dúvida que o brasileiro. Porém, isso não quer dizer que a nossa experiência seja a mais consolidada; não mesmo. EUA têm uma das mais consolidadas democracia (mesmo que limitada) do mundo. Ao mesmo tempo, uma democracia consolidada como a dos EUA e uma democracia robusta como a do Brasil não espantam falhas e riscos, dentre os quais a corrupção e o jogo da governabilidade.
Mas qual foi o caminho para que o Brasil pudesse ter alcançado uma experiência democrática robusta e sofisticada (mesmo que grande parte da sua população não a reconheça como tal)? Bom, esse caminho foi sinuoso e envolveu tensões e golpes de Estado. A própria instituição da República, sistema de governo que permite ao povo escolher o seu governante de tempos em tempos, foi fruto de um golpe, em 1889. Porém, a República não só nos trouxe a possibilidade de alternância de poder no exercício da gestão pública, como também nos garantiu, gradativamente e por meio da democracia, a participação popular na escolha dos governos.
Então, eu quero analisar aqui o significado do dia 08 de janeiro de 2023 enquanto tentativa de ruptura institucional a partir de dois momentos anteriores em nossa história republicana: a ditatura de Getúlio Vargas (1930-1945) e a ditadura militar (1964-1984). Em 1852, numa importante obra de análise de conjuntura intitulada O 18 Brumário de Luís Bonaparte, o velho Karl Marx expressou a frase: “a história se repete a primeira vez como tragédia e a segunda como farsa”. Pois bem, num contexto em que o regime político brasileiro era fraco, o sistema eleitoral frágil, as instituições de Estado incipientes e o governo nacional concentrado exclusivamente no Sudeste, houve uma primeira ruptura institucional em 1930, a partir do movimento liderado pelo gaúcho Getúlio Vargas.
Vargas defendia um projeto nacional desenvolvimentista, baseado no fortalecimento e na integração do mercado interno, da implantação de parques industriais e na segurança nacional com a vigilância da fronteira. Para tanto, profissionalizou e burocratizou os órgãos públicos, criou ministérios essenciais, abriu órgãos de pesquisa (como é o caso do IBGE) e consolidou as Forças Armadas.
Apesar da importância das ações de Vargas, o pano de fundo de tudo isso tinha como intenção alojar a nascente burguesia industrial no circuito do poder, sem romper totalmente com a elite agrária, mas destituindo-lhe do comando absoluto. O preço político para tanto foram 15 anos de uma ditadura perseguidora, totalitária e violenta, que além de tudo estimulou a ocupação do sertão brasileiro, através da política colonizadora da Marcha para o Oeste, ignorando as comunidades e povos tradicionais presentes no território: indígenas, camponeses, ribeirinhos, extrativistas, quilombolas etc.
A primeira repetição dessa história golpista, de ruptura institucional, veio como uma tragédia: o golpe militar de 1964. Segundo o historiador Thomas Skidmore, na clássica obra Brasil: de Getúlio a Castelo, este golpe deveria ter acontecido 10 anos antes, em 1954, quando Getúlio Vargas era novamente presidente, mas agora eleito (para o mandato de 1951 a 1954). Porém, ao cometer suicídio diante da pressão política, Vargas agitou as massas populares e espantou o fantasma do golpe por 10 anos.
Contudo, o golpe veio em 1964, coordenado por uma ala ultraconservadora das Forças Armadas associada às elites agrárias nacionais atrelada ao conglomerado capitalista internacional, sob o comando dos EUA, que envolvia os bancos, as indústrias automobilísticas, as indústrias químicas e os laboratórios de plantas transgênicas. A base do negócio? A reprimarização da economia brasileira. Para tanto, o governo brasileiro retirava os incentivos do setor industrial e os canalizava para o agronegócio, especialmente no centro-norte do país.
Assim, os produtores rurais concentravam os incentivos do Estado para uma produção de monoculturas (com a primazia da soja) que operava (e ainda opera) o capital internacional do agronegócio. Os produtores rurais brasileiros negociam o seu produto em dólar, mas o grande lucro é para os bancos, as indústrias automobilísticas, as indústrias químicas e os laboratórios de plantas transgênicas internacionais. Isso fez intensificar os conflitos fundiários no país, em função da constante expansão territorial da produção rural, ao mesmo tempo em que se gerou os grandes problemas ambientais que vivemos hoje.
Por fim, a história veio a se repetir novamente, agora como farsa, e isso aconteceu em 08 de janeiro de 2023. E que farsa: tudo se baseou nas fake news, ou notícias falsas, o motor da desestabilização da nossa democracia nesta última tentativa golpista. Assim como em 1964, em 2023 o golpe também intencionava implantar um projeto imperialista dirigido pelos EUA e contou com o seu apoio não só no financiamento direto, como também nas definições de ações estratégicas através da CIA.
Na verdade, a tentativa de golpe de 2023 também teve início 10 anos antes, em 2013, com as manifestações cooptadas pelo MBL – Movimento Brasil Livre, constituído por jovens de classe média e de direita com formação tática e estratégica orientada pela CIA. Num esclarecedor artigo, o escritor e geógrafo Brian Mierelenca as artimanhas dessa grande conspiração, que visava retirar o Brasil de seu destacado papel conquistado entre 2000 e 2015 no competitivo mercado internacional de aviões, navios e submarinos, carne, construção civil e derivados de petróleo. O interesse direto era da Microsoft, da Boeing, da Monsanto e da Shell, mas também concorreram a Taurus, a Chevron e algumas outras.
O historiador Gabriel Kanaan revelou numa pesquisa recente com o título Imperialismo e Guerra Híbrida que 2.867 telegramas foram enviados pela Embaixada e Consulados estadunidenses no Brasil para o Departamento de Estado em Washington, vazados por Chelsea Manning e publicados pela WikiLeaks, embasando as estratégias de desestabilização impetradas pela CIA. Em outras palavras, o crescimento econômico do Brasil e o seu destacado papel na política internacional, especialmente sob os governos de Lula, constitui para os EUA uma ameaça aos seus interesses imperialistas, o que lhes motivou em nossa história recente (e também em 1964) o estímulo ao golpe.
A receita do golpe envolve ingredientes financiados indiretamente pelas empresas citadas acima, que adiciona fake news, fundamentalismo religioso cristão (pautas de costumes defendidas por igrejas evangélicas e alas hegemônicas da igreja católica), intolerância às diferenças sociais e violência, negacionismo científico e patriarcalismo. Ao mexer isso no caldeirão da história o que se produz é o fascismo do século XXI, intencionado pelos EUA como forma de garantia de sua hegemonia na corrida imperialista contra a China e outras possíveis nações em ascensão.
A democracia brasileira mostrou-se madura no dia 08 de janeiro de 2023. A união das instituições republicanas, democráticas e de Direito afugentou a tentativa de golpe e mostrou aos aventureiros que o Brasil é um país para os brasileiros e não para o imperialismo norte-americano ou de qualquer outro país. Mostrou também que há lobos se vestindo de ovelhas para causar o caos em troca de vantagens. Diante do caos, prevaleceu o verdadeiro espírito cívico e a obediência à ordem constitucional. Partidos de matizes e ideologias diferentes se aliaram, as casas do poder se uniram, as entidades civis reagiram.
Na terceira década do século XXI não há mais espaço político para golpes e rupturas institucionais no Brasil. Nosso país tem uma missão histórica, que é ser uma das principais potencias internacionais nas próximas décadas. Para quem persegue o futuro, não há sentido para o retrocesso.
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Adão Francisco de Oliveira é doutor e pós-doutor em Geografia, graduado em História e mestre em Sociologia. É professor da Graduação e da Pós-Graduação em Geografia da UFT, ex-secretário de Educação e ex-secretário de Cultura do Tocantins.