Tico e seu bando – Foto – Divulgação
Se você chegou agora e não leu a coluna de ontem, saiba que esta é a continuidade da incrível história de Tico.
Aqui está a primeira parte: https://gazetadocerrado.com.br/opiniao-do-leitor-a-historia-de-tico-parte-i/
Continuando a história – o tempo virou
Um certo dia, a sorte de Tico mudou. Assim, de supetão. Sem mais nem menos, da noite para o dia, Tico se viu longe de sete das oito fêmeas que sempre estavam ao seu redor. Sem saber entender o que passava, Tico teve seu temperamento agravado. O que antes já era forte, tornou-se violento. Dizem nas bandas por onde passava, entre Fuentes de Onõro – na Espanha e Vilar Formoso, no lado português, que depois deste triste sucedido, Tico era avistado sempre sozinho. Mesmo de longe, se via que estava deprimido, chateado. Era fácil perceber a falta que Tico sentia do seu harém.
Tudo foi piorando
Dias se passaram e sua tristeza não diminuia. Estava inconformado com as mudanças e passou a se isolar dos poucos liderados que ficaram. Tico vagava macambúzio pelos campos e parcelas. Volta e meia era visto invadindo terras alheias, possivelmente em busca das companhias que perdera. As amadas lhe faziam enorme falta. Por vezes Tico gritava, solitário, como se estivesse por chamar suas companheiras. Como um ritual, repetia diariamente as longas caminhadas entre a divisa de Portugal e Espanha, na esperança de poder encontrá-las. Não as via. Não as encontrava. E foi ficando cada vez mais ansioso e rancoroso.
Apatia e raiva
Não demorou muito e a tristeza de Tico transformou toda sua força em apatia. Estava deprimido e doente, como se tivesse perdido a razão de viver. Essa situação transformou-lhe o ânimo. Tornou-se ainda mais violento e furioso com todos os que se aproximavam dele. Era como se procurasse os culpados de sua tristeza. Todo seu entorno passou a ser também seu inimigo. Imaginava que todos haviam conspirado contra ele. Sentia que era necessário se vingar daqueles que passou a considerar como sendo seus traidores.
Ao extremo
Com o passar dos dias, o relacionamento ficava cada vez mais penoso, a ponto de Tico atacar as pessoas. Chegou a me ferir com uma cabeçada. Marcou em minha pele o registro de toda a sua indignação. Uma cicatriz que carregarei até o final da minha jornada. Jamais sairá de mim. E Tico, cada vez mais sorrateiro, moribundo e violento, tornou-se arredio e solitário pelos campos. Não permitia mais aproximação e se alguém assim o fizesse, certamente seria agredido. A situação se tornou insuportável. Nem mesmo a presença de Cabeçuda, a única fêmea que sobrara, era suficiente para que Tico pudesse retomar sua rotina original. A inconformidade era irreversível e o luto não acabava.
A gênese de Tico
Tico tornou-se prisioneiro de seus comportamentos. Influenciou seu relacionamento com o gênero que adotara ao ponto de não conseguir conviver nem mesmo com os indivíduos da sua espécie. Até mesmo com eles passou a viver às turras e cabeçadas. Mas esse comportamento, essa aparente crise de identidade, deveria ter uma razão. Com dois anos e meio de idade, Tico já era um bode marrento. Sim, um bode que pensava ser um carneiro. Não convivia entre as cabras. Agia como se fosse um guardião, meio que ovelha, alheio à sua gênese. Tico se sentia como um carneiro, uma ovelha macho, ao ponto de dominar o único macho do rebanho – o Bebê – que vivia entre as ovelhas.
O triste fim de um bode
Tico, um bode que renegou sua espécie, que perdeu suas fêmeas e se perdeu em suas atitudes. Suas escolhas lhe causaram enormes dissabores. Inconformado com a mudança, que agravou seu estado de espírito, passou a ser rebelde, agressivo e teimoso e sua vida acabou por ter o mesmo desfecho de muitos carneiros. Terminou sendo vendido a uma família muçulmana. Tico foi abatido e carneado pela família. Era o fim de sua história, que permanecerá viva nos campos de Fuentes de Oroño, na Espanha e na cicatriz em minha perna.
Por Gilberto Correia – Jornalista, poeta, escritor e professor universitário.