Ícone do site Gazeta do Cerrado

Defensoria cobra ações antirracistas da Câmara de Araguaína após repercussão de falas de vereador

(Divulgação)

“A língua não é um lugar pacífico, mas um mecanismo que alimenta políticas discriminatórias”, afirma o Núcleo Especializado de Questões Étnicas e Combate ao Racismo (Nucora) da Defensoria Pública do Estado do Tocantins (DPE-TO) em Nota Pública do dia 30 último, divulgada nesta terça-feira, 5, sobre situação ocorrida na Câmara Municipal de Araguaína em que o vereador Soldado Alcivan foi chamado por outro parlamentar municipal de “…um negro de alma branca, um negro bom…”.

Na Nota Pública, o coordenador do Nucora, Arthur Luiz Pádua Marques, destaca autores relevantes na literatura científica e de pesquisa sobre o racismo e, partir desse resgate, considera que “(…) o Brasil possui uma tradição escravocrata e colonialista, (…) e por esse motivo é “(…) indispensável entender a língua como uma marca de dominação que figura como estruturante do racismo”.

O Nucora chama à reflexão ao fato de que a denominação “negro de alma branca, negro bom” desvincula a negritude da condição de bondade, tornando-as categorias que se contradizem, o que promove discriminação. “O que evidencia a relação interdependente entre a língua e o racismo, e aponta para a necessidade de subversão da imposta, e urgência de comprometimento público, privado, individual, coletivo, civil e institucional para com a pauta racial, visto que ainda não experenciamos uma democracia racial em um país composto majoritariamente por pessoas negras”, consta em outro trecho da Nota, que foi encaminhada à Presidência da Câmara Municipal de Araguaína nesta segunda-feira, 4.

Confira o Documento na íntegra clicando aqui.

Entenda:

Em vídeo, a partir do minuto 39:53, é possível ver o momento exato que o Ver. Marcos Duarte diz que o Ver. Alcivan é um “negro de alma branca”, por isso é um “negro bom”. Com consciência de suas falas, o próprio Vereador menciona que no dia seguinte toda a imprensa irá repercutir o que foi dito na Tribuna e cita a situação em que o Ministro Barroso se refere ao Ministro Joaquim Barbosa a “negro de primeira linha”. Tais comentários ferem à população negra, que diariamente são descriminadas por terem o tom de suas peles colocadas como inferiores comparadas a peles brancas, uma infeliz herança histórica do período escravocrata do Brasil.

Ao dizer “preto de alma branca”, “negro de primeira linha”: significa se dirigir a uma pessoa preta fazendo referência à dignidade dela como algo pertencente apenas às pessoas brancas, tais expressões disfarçadas como elogio na verdade estão carregadas de racismo e no Brasil, racismo é crime.

Nos termos da Lei nº 7.716/2016, em seu art. 20, o comportamento da prática ou indução discriminatória é capitulado como prática anti-jurídica:
Art. 20. Praticar, induzir ou incitar a discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional. (Redação dada pela Lei nº 9.459, de 15/05/97)
Pena: reclusão de um a três anos e multa. (Redação dada pela Lei nº 9.459, de 15/05/97).

As palavras do vereador, dentro do contexto mencionado, denotam com a necessidade de emprego de parca atividade interpretativa, inferioridade atribuída às pessoas negras, ao passo que expressa estima pelo vereador Alcivan, o “elevando” à condição de “negro de alma branca”. Inclusive reforça a narrativa de superioridade racial das pessoas brancas quando conclui que, por ser o colega “de alma branca”, ele seria um “negro bom”.

O maniqueísmo empregado na dicotomia bem-mal como respectivamente correspondente a branco-negro, é claramente conduta racista ao passo que perpetua a condição histórico-social de preconceito e discriminação aos quais a população de negra é submetida no Brasil. O racismo brasileiro se espalha dentro do discurso, é rasteiro, traiçoeiro, e com frequência, como no caso noticiado, utiliza-se de sortilégios argumentativos para se apresentar com um véu, posto como justificativa para promover o engodo de afirmar que não seria uma fala racista. Entretanto, ao se retirar tal véu, dissecando os termos utilizados e a linha semântica, o racismo se apresenta no seu estado mais puro, o da ideia de superioridade da pessoa branca, associando virtudes aos integrantes dessa etnia, enquanto a delinquência, as falhas de caráter, e demais características reprovadas pela sociedade são associadas aos negros.

A fala proferida pelo vereador ocorreu inclusive durante o exercício de sua função pública, durante sessão da Câmara de Vereadores do Município de Araguaína, captada em vídeo, cuja cópia segue anexa à presente notícia-crime.

Ou seja, resta claro o conteúdo de incitação ao racismo, cunhado na ideia de superioridade branca, na fala do vereador em questão, razão pela qual este coletivo a entende como antijurídica do ponto de vista penal, e solicita a apuração de possível ato delituoso criminal do vereador em comento, nos termos da legislação processual penal vigente.

Alcivan lamentou fala de colega

Alcivan lamenta o episódio, e afirmou que mesmo em tom amistoso, a fala se caracterizou como uma prática preconceituosa. “Infelizmente um episódio lamentável roubou a cena. Falo das palavras com as quais o nobre amigo se dirigiu a minha pessoa. Mesmo em tom amistoso, se caracterizou como uma prática preconceituosa. A naturalização dessas ações, atos, situações, falas e pensamentos, fazem parte do nosso cotidiano, que promove direta ou indiretamente o preconceito racial. Isto é o que chamamos de racismo estrutural, na qual hoje em nossa sociedade, está meio que normalizado. Frases e atitudes de cunho racista e preconceituoso, que muitas vezes surgem como forma de piada ou até como forma de elogio, e que acabam nos colocando em situações degradantes”, disse o parlamentar.

“Como cidadãos de segunda classe ou raça inferior. Isso se incorporou em nossa cultura. Expressões como ‘negro de alma branca’, ‘serviço de preto’ ou ‘negro bom’, dentre outras tantas, foi incorporadas em nossa cultura com objetivo claro de reduzir ou diminuir o negro em sua importância social”, complementou o vereador.

Alcivan declarou que não viu maldade na fala de Marcos, mas que tal atitude é fruto de desconhecimento do que seja o racismo estrutural. “A alma de uma pessoa e seu caráter não tem cor, por isso, meu nobre amigo Marcos Duarte, esclareço que não vi maldade, mas talvez desconhecimento de sua parte do que seja o racismo estrutural. Por esta razão, devemos entender para combater. Esta Casa de Leis deve zelar pela dignidade humana, sobretudo; e primar pelo combate de todo racismo e preconceito, pois somos todos iguais”, finalizou.

Alcivan Rodrigues, vereador de Araguaína (Foto: Divulgação/Câmara)

Marcos tenta se justificar

Após Alcivan lamentar a conduta do colega, novamente na tribuna, Duarte afirma que quando fala em ‘negro de alma branca’, esta destacando a pureza da alma de Soldado Alcivan (Progressistas).

“Na fala do negro de alma branca, o branco representa pureza, clareza, luz. E aquilo que foi colocado ali, não era de cunho racista, era da pureza da alma do Soldado Alcivan, da luz que nos traz. […] Nós aqui defendemos as pautas das minorias. De maneira alguma apoiamos qualquer tipo de racismo ou homofobia, mas temos nossas ideias claras”, disse.

Investigação por homofobia

Não é a primeira vez que Marcos é denunciado ao MPTO. O Coletivo Somos já o denunciou por publicações homofóbicas nas redes sociais.

Na época, o vereador criticou a publicação por parte da Prefeitura de Araguaína, de um material à imprensa que fez parte de uma série de matérias especiais em comemoração ao Dia dos Namorados, onde conta a história de Paulo e Pedro. O primeiro casal homoafetivo do Tocantins.

Na época, o vereador Marcos disse que a Assessoria de Comunicação da Prefeitura de Araguaína, usou os perfis e site do Paço para fazer apologia a homossexualidade.

Na publicação, que foi feita em seu Instagram, ele diz que respeita a orientação sexual de qualquer pessoa, mas é contra que canais de comunicações oficiais da Prefeitura de Araguaína sejam usados como forma de divulgar a homossexualidade.

“A Assessoria de Comunicação da Prefeitura é paga com dinheiro público e não concordo que o dinheiro do povo seja gasto em tais campanhas midiáticas de incentivo a pautas ideológicas !!”, disse Marcos em trecho de sua nota de repúdio.

Ao fim, ele afirma que, como cristão, defende a família tradicional e os valores cristãos.

Sair da versão mobile