“O que acontece se você comer algo?” É com perguntas assim que a catarinense Fernanda Martinez, 22 anos, tem que lidar toda vez que abre suas redes sociais.
“Risco de vida”, responde enquanto explica os diagnósticos de paralisia do trato digestivo e falência intestinal que a fizeram deixar de “comer” há mais de 2 anos.
Diagnosticada com a síndrome de Ehlers-Danlos, uma condição genética que causa anormalidade na produção de colágeno no corpo e pode afetar o sistema digestivo, Fernanda passou a receber os alimentos diretamente por uma sonda em 2018. Seu corpo já não conseguia fazer a digestão adequadamente.
E, desde outubro de 2019, como a absorção dos alimentos também passou a ser insuficiente, a jovem precisou iniciar a chamada nutrição parenteral, quando se recebe nutrientes pela veia.
“É como se digeríssemos o alimento externamente e criamos um soro com aminoácidos, proteínas, lipídios, gorduras, glicose e injetamos diretamente numa veia mais grossa”, explica a médica nutróloga Pâmela Finkler Richa, que acompanha a jovem semanalmente.
Mas as explicações de Fernanda não param aí. Surdez unilateral, angiodema hereditário, câncer de tireoide, urticária aquagênica e fibromialgia são outros diagnósticos que ela faz questão de explicar aos seus mais de 400 mil seguidores nas redes sociais, entre os perfis pessoais e de seu projeto “Convivendo com Doenças Raras”.
Os vídeos bem-humorados e com mensagens de otimismo e incentivo àqueles que também enfrentam doenças raras chegam a passar de 1 milhão de visualizações no TikTok, rede onde ela faz mais sucesso.
“A curiosidade não me incomoda e recebo muitas mensagens tanto de apoio quanto de gente que reviu questões em sua própria vida ao ver a forma como lido com as coisas”.
Em depoimento a BBC News Brasil, Fernanda contou de sua casa, em Florianópolis, sua história e respondeu às quatro perguntas que ela mais lê diariamente.
Infância
“Desde bebê, eu já dava alguns sinais de algo não estava bem.
Eu fui uma criança com muita dor nas pernas, braços. Já nasci com refluxo severo, surda de um ouvido. A família só foi perceber por volta dos 2 anos de idade, mas os problemas já estavam lá.
Eu também tinha articulações hipermóveis, que são aquelas que se movem além do limite normal. Tinha muita facilidade de me contorcer, tirar as articulações do lugar
Esses sintomas foram piorando na medida em que eu ia crescendo.
Todo mundo sabia que tinha algo de errado, mas não sabiam o que era.
Não sabia mais para onde correr, mas foi aí que eu encontrei um grupo no Facebook falando sobre a Síndrome de Ehlers-Danlos. Me identifiquei com os relatos e fui atrás de uma geneticista. Ela fez todos os exames e confirmou.
O diagnóstico da síndrome só chegou quando eu tinha 17 anos. Mas as complicações já eram graves. Ela era a principal doença de base que eu tenho e que puxou praticamente todas as outras.
Eu já tinha lesões nas articulações, já sofria com a disautonomia, que é o sistema nervoso autônomo afetado. Já tinha problemas de alimentação, com diarreia, vômitos, dores de estômago.
Mas agora, com um nome para tudo que estava acontecendo, pude respirar melhor. Eu agora tinha uma explicação e poderia falar pros médicos e pros outros o que eu tinha.
Descobri que a síndrome afeta especialmente o colágeno, que atua na sustentação, é a cola do corpo. Não é que você não tem o colágeno, mas ele é de má qualidade no corpo inteiro.
As articulações são mais frágeis, podem sair do lugar, os órgãos são mais frágeis, os vasos sanguíneos se rompem com facilidade.
Pra quem busca na internet, o que chama atenção na síndrome é aquilo de articulações tronchas, ou as peles soltas que puxam, elásticas. Mas não é só isso. Tem muita coisa em órgão interno e outros sintomas, como aconteceu comigo.”
(As Síndromes de Ehlers-Danlos consistem num grupo de condições genéticas causada por anormalidades na produção e estrutura de colágenos no corpo, presentes desde os ossos até órgãos internos. Uma classificação de 2017 definiu 13 tipos. A de Fernanda é a chamada SEDh, ou “hipermóvel”, que é a mais comum e afeta principalmente articulações, ossos, músculos… Algumas das manifestações incluem fibromialgia, escoliose, fadiga crônica e problemas respiratórios, digestivos e gastrointestinais. Apesar da grande subnotificação, estima-se que 1 em cada 5 mil pessoas tenham a síndrome no mundo, que pode se manifestar de formas mais leves ou graves.)
‘Você não come nada? E a fome?’
“Não posso comer nem beber nada.
Meus órgãos e músculos internos ficaram mais fracos por causa da síndrome. O meu sistema nervoso, que coordena os movimentos peristálticos, também é afetado.
No final de 2016, eu comecei a ter muita dificuldade pra comer, até chegar ao ponto de desnutrição severa. Passei 1 ano e meio nisso, comendo cada vez menos, tentando mudanças de dieta.
Em maio 2018, eu nao aguentei mais comer e fui pra sonda.
Fernanda Martinez e sua mãe; alterações na saúde da jovem já eram perceptíveis na infância — Foto: Acervo Pessoal
Depois que coloquei a sonda, passei 1 ano e meio bem. Fiquei com mais energia, só que meu corpo começou a rejeitar tudo também que vinha pela sonda. Meu intestino não absorvia mais os nutrientes.
No fim de 2019, entrei em desnutrição severa outra vez e fiquei internada novamente. Foi quando colocaram o soro para minha nutrição parenteral.
(A nutróloga Pâmela Finkler Richa, que acompanha Fernanda, acrescenta que a desnutrição severa fez com que a jovem desenvolvesse uma obstrução no duodeno, impedindo a passagem e absorção dos alimentos)
Já recuperei grande parte do peso, mas agora apareceu problema no fígado, onde a nutrição é metabolizada. Mas vou ter que dar um jeito nesse problema do fígado, porque nao pode voltar.
Eu não sinto fome já há um bom tempo, porque ela depende de movimentos no estômago, e o meu não faz mais.
Antes, eu tinha mais vontade psicológica de comer. Quando eu tenho vontade, eu mastigo e jogo fora, sem engolir.
Faço isso de mastigar mais para manter a rotina, por exemplo para acompanhar minha mãe no almoço, para ela não ficar sozinha.”
(Fernanda tem um homecare montado na casa onde mora com a mãe e a avó e é acompanhada por duas enfermeiras diariamente. A nutrição parenteral ocorre num período de 12h por dia, de noite até a manhã do outro dia)
‘Como você toma banho?
“Minha urticária aquagênica, que as pessoas costumam chamar de “alergia a água”, apareceu quando eu tinha uns 15 anos.
Eram reações espaçadas, mas foram piorando.
Eu evito o máximo que posso de água. Tento não ficar suada, não posso entrar em piscina, no mar. Não pego chuva.
Pra tomar banho, eu uso um antialérgico, na tentativa de melhorar algum sintoma. Engulo só com a saliva.
Banho de corpo inteiro, só duas vezes por semana: coça, arde, a pele fica cheia de manchinhas vermelhas. Quando está muito forte, dói bastante, como se fossem milhares de agulhas entrando no corpo.
Ultimamente, tenho deixado mais de tomar por não suportar o comprimido do antialérgico no estômago. Então, tomo o mais rápido possível ou só banho de gato, com paninho.
Mas mesmo que não tivesse a alergia, não poderia entrar no chuveiro direto. O cateter onde recebo o soro não pode ser molhado, tem que ter muito cuidado.
Não conseguiram identificar ainda se isso está diretamente ligado à síndrome, mas há relatos de outros pacientes que também têm. Assim como esse problema, há outros que ainda precisam descobrir se têm relação, como o angioedema (que causa inchaços nas extremidades do corpo, face e órgãos genitais).
A única doença que tenho certeza que não tem relação com a Síndrome de Ehlers-Danlos foi um câncer de tireoide papilífero que tive. Meus pai e avô também tiveram, é de família. E há casos de pessoas que tiveram esse câncer e também desenvolveram a urticária aquagênica.”
‘Tem cura?’
‘99% do tempo de pessoas diagnosticadas com síndromes raras é tomado pela própria doença. Mas o 1% — de alegria, vontades, desejos — é o que equilibra nossas vidas’, conta Fernanda — Foto: Acervo Pessoal
“Não tem tratamento específico, vai tratando o que aparece,
Na parte gastrointestinal, não é esperado que reverta. Provavelmente, a nutrição parenteral vai continuar pro resto da minha vida.
O resto das doenças, como problemas na articulação, dá para controlar mais, com fisioterapia, para evitar que lesione ainda mais.
A reversão completa, uma cura, não tem, até o momento. O que eu posso fazer por mim é buscar qualidade de vida, não perder as coisas que gosto de fazer, como jogar online.
“Não sou revoltada”
Não sou revoltada com minhas condições e busco aprender com elas.
Me apaixonei por medicina após passar por vários médicos, ainda quero fazer o curso quando puder.
Até lá, quero catalogar as doenças raras. Não contemplar todas, pois são muitas, mas cadastrar o máximo que conseguir, para ajudar quem recebeu o diagnóstico e não sabe o que aquilo quer dizer.
Não é pra substituir médico, mas pra ajudar a entender a própria doença ou explicar de forma simples pras pessoas. E, se eu ajudar apenas uma pessoa, já é tarefa cumprida.
99% do tempo de pessoas diagnosticadas com síndromes raras é tomado pela própria doença.
Mas o 1% — de alegria, vontades, desejos — é o que equilibra nossas vidas. Então, a minha necessidade também é mostrar esse 1%. Ele é tão importante quanto os 99%.
Se um dia tiver a cura, quero ser a primeira da fila.”
fonte: G1