Por Rubens Gonçalves 


Alguém já observou que o oposto de morte deveria ser nascimento, e não vida. Nesta segunda-feira, dia 2, “nasceu” para mim o aclamado escritor brasileiro Cristóvão
Tezza, pois foi quando comecei a ler O Filho Eterno, obra que narra o desespero e o processo de aceitação da chegada de Felipe, um filho com síndrome de Down. No mesmo dia, perdi um grande amigo: o médico anestesiologista Carlos Henrique Pinheiro de Araújo.

Tezza possui uma carreira literária extensa, marcada pela publicação de romances, contos e ensaios. Sua obra é reconhecida pela profundidade psicológica e pela exploração de temas universais, sempre abordados a partir de perspectivas pessoais e introspectivas.

O Filho Eterno é uma obra semiautobiográfica, inspirada na experiência do próprio autor, que é pai de um filho chamado Felipe, nascido com síndrome de Down. O livro recebeu elogios entusiasmados da crítica e foi adaptado para o teatro e o cinema, consolidando Cristóvão Tezzacomo um dos grandes nomes da literatura brasileira contemporânea.

Meu amigo Carlos Henrique Pinheiro de Araújo, o Dr. Carlão, era um mineiro de maneiras simples, apesar de sua distinção na área médica, que amava uma partida de xadrez e tocava viola de sete cordas. Ele preferia tomar uma cerveja gelada em uma distribuidora ou banca de revistas, em vez de frequentar os bares e restaurantes caros da cidade. Sempre dizia que se sentia mais à vontade nesses lugares, onde encontrava pessoas de vocabulário genuíno, longe da pompa da elite.

Porém, levava uma vida agitada e estressante, como tantos profissionais de saúde, com extenuantes plantões em hospitais públicos e privados, muitas vezes em cidades diferentes. No entanto, entre um plantão e outro, encontrávamo-nos em uma banca de revista para um breve bate-papo, sempre acompanhado de uma cerveja gelada e boas baforadas de palheiro.

Por tudo isso, recebi com desolação a notícia de sua partida, causada por um infarto: “É com profundo pesar que lamentamos a perda do Dr. Carlos Henrique Pinheiro de Araújo. Nossas sinceras condolências à família e amigos neste momento difícil…”

Li e reli a nota de pesar, incrédulo, sem conseguir entender como alguém que dedicou a vida a salvar tantas outras não conseguiu salvar a própria. É razoável supor que tenha recebido o melhor tratamento possível de seus colegas, mas, tragicamente, tudo parece ter sido em vão.

Por horas, refleti também sobre a coincidência entre o “nascimento” da obra de Tezza e a morte do Dr. Carlão. Será que quem disse que o oposto da morte deveria ser o nascimento tinha razão? Por que minha mente ligou esses dois acontecimentos? Lembrei-me então de um trecho do texto “Me Chamem de Velha”, da jornalista e escritora Eliane Brum, no qual ela afirma: “A morte não é o contrário da vida. A morte é o contrário do nascimento. A vida não tem contrários.”

Mas a associação não termina por aí. Em minha memória, sempre frágil quando se trata da vida prática, vi o Dr. Carlão, emocionado, falar por longo tempo sobre o amor e os cuidados que dedicava à sua filha, Maria Eduarda (Duda), uma pessoa com síndrome de Down, a quem ele descrevia como genial. Cada conquista dela – como a conclusão da leitura de mais um livro ou o súbito interesse por um instrumento musical – fazia com que ele esquecesse o estresse do trabalho. Imagino que, como todos os pais de filhos atípicos, sua maior preocupação era a autonomia da Duda – especialmente quando ele fizesse a viagem sem retorno.

Refletir sobre esses dois eventos foi perceber que a vida é uma constante intersecção de começos e fins. O “nascimento” da obra de Tezza, que explora o amor incondicional, de alguma forma ressoa com a experiência do querido amigo Dr. Carlão e sua dedicação à filha.

*Rubens Gonçalves é jornalista, escritor e cronista.