Foto: AP/Scott Heppell, Arquivo
Quase 300 cientistas reunidos pela ONU afirmaram que a crise do clima é causada pelo homem, que alguns dos seus efeitos são irreversíveis e agora alertam que seus impactos serão sentidos de forma desigual: os mais pobres e mais vulneráveis já são e continuarão sendo os mais afetados.
Abaixo, veja cinco pontos do relatório que apontam impactos da crise ( especialmente algumas regiões, incluindo o Brasil), os dilemas e a adaptação em andamento.
- ‘Injustiça climática: impacto do aquecimento global será desigual
- Impacto já ocorre hoje e metade do planeta está na mira
- Américas Central e do Sul estão ‘altamente expostas’, e isso inclui o Brasil
- Relatório evita atribuir ‘culpa’ e não cita os países ‘menos vulneráveis’
- Em pequena escala, humanidade já enfrenta a crise com medidas positivas de adaptação
Antes de detalhar os cinco pontos, um breve contexto: o alerta que tem o crivo da ONU foi feito pelo grupo de especialistas reunidos no Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC). Em agosto de 2021, o IPCC divulgou a primeira parte do relatório. Ela tratou da ciência por trás das mudanças do clima e apontou que parte das ações diretas do homem em relação ao planeta têm consequências irreversíveis. Agora, a segunda edição do relatório é voltada para os impactos da crise do clima, os possíveis caminhos de adaptação e as vulnerabilidades globais.
1. ‘Injustiça climática: impacto do aquecimento global será desigual
Inicialmente, a parte do documento direcionada aos líderes dos países e tomadores de decisão contava com o termo “injustiça climática”. Mas, segundo o Observatório do Clima (OC) — rede de 70 organizações da sociedade civil —, mesmo após retirar a expressão, “o documento traça um quadro avassalador” da desigualdade.
“Ainda que o relatório não fale expressamente, nós já estamos vivendo um contexto de injustiça climática, onde os impactos adversos de eventos climáticos extremos variam por diferenças na exposição e na vulnerabilidade da população impactada”, disse Stela Herschmann, especialista em políticas climáticas do OC.
O IPCC alerta que os eventos extremos estão cada vez mais frequentes e já expuseram milhões de pessoas à insegurança alimentar e hídrica. No entanto, apesar de ser um fenômeno global, os maiores impactos são observados na África, na América Latina, na Ásia e nos pequenos países insulares e no Ártico.
Além disso, a mudança do clima retardou os ganhos de produtividade da agricultura mundial nos últimos 50 anos. A desnutrição aumentou, afetando principalmente idosos, crianças, mulheres grávidas e indígenas.
“O aquecimento global não atinge de forma homogênea todo mundo. Ele tem uma alta heterogeneidade. Os fatores de risco são: pobreza, alta desigualdade social, marginalização, seja por gênero, por etnia, por cor, por status, por idade. As crianças, os jovens, as mulheres, os indígenas, populações tradicionais, populações muito pobres, são eles que são os mais vulneráveis”, disse Patrícia Pinho, pesquisadora do Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (IPAM) que participou da elaboração de um dos capítulos da edição.
2. Impacto já ocorre hoje e metade do planeta está na mira
A vulnerabilidade de pessoas e ecossistemas à mudança do clima é variável. Hoje, segundo a nova edição do relatório, 3,3 bilhões a 3,6 bilhões de pessoas vivem em locais ou contextos altamente vulneráveis à mudança do clima.
“A mortalidade por enchentes, secas e tempestades, por exemplo, foi até 15 vezes maior em países altamente vulneráveis em comparação com países muito pouco vulneráveis na última década. Sendo que mais da metade da população mundial vive hoje em contexto de alta vulnerabilidade e esses foram os países que contribuíram menos para a crise climática”, disse Herschmann.
Gênero, etnicidade e renda são fatores de aumento dessa vulnerabilidade.
“Este relatório é uma luz vermelha piscando, um grande alarme para onde estamos hoje. Pela primeira vez, o IPCC fala explicitamente da preocupação com os impactos humanitários das mudanças climáticas que já ocorrem hoje”, declarou Maarten van Aalst, diretor do Centro Climático da Cruz Vermelha Internacional e coordenador do relatório.
3. No Brasil, vamos sentir o impacto
O documento aponta que as Américas Central e do Sul estão “altamente expostas, vulneráveis e fortemente impactadas pelas mudanças climáticas”. O IPCC lista uma série de problemas que amplificam o problema:
- desigualdade
- pobreza
- crescimento e alta densidade populacional
- mudanças no uso da terra, particularmente o desmatamento com a consequente perda de biodiversidade
- degradação do solo e alta dependência das economias locais dos recursos naturais para a produção de commodities
De acordo com o documento, essas informações são de “alta confiança”. O IPCC chama a atenção para um aumento da frequência e gravidade das secas, com diminuição da oferta de água, o que deve impactar a produção agrícola, a pesca tradicional, segurança alimentar e a saúde humana.
“As mudanças climáticas afetam a epidemiologia das doenças infecciosas sensíveis ao clima na região [Américas Central e Sul]. Por exemplo, os efeitos do aumento das temperaturas irão trazer alta adequação das doenças transmitidas por vetores, incluindo as endêmicas e emergentes doenças arbovirais, como dengue, chikungunya e zika”, aponta o IPCC.
Um ponto direcionado especialmente ao Brasil é a chance de fluxos migratórios relacionados às questões do clima. Os Andes, o Nordeste do Brasil e os países do Norte da América Central estão entre as regiões “mais sensíveis a problemas climáticos com migrações e deslocamentos, fenômeno que tem aumentado desde o AR5″. O 5º Relatório de Avaliação (AR5) foi lançado em 2014.
“Quando você pega como base o Brasil, vemos que dentro do próprio país existem desigualdades absurdas. Não só com relação aos extremos Norte e Sul, mas também com relação à vulnerabilidade da população e à capacidade de adaptação. Um evento de seca extrema no estado de São Paulo tem um efeito, mas se você vê um evento de seca extrema na Amazônia, você tem outro efeito”, explica Pinho.
4. Relatório evita atribuir ‘culpa’ e não cita ‘menos vulneráveis’
A retirada do termo “injustiça climática” está relacionada com a resistência de alguns países em assumir a culpa. De acordo com análise do Observatório do Clima, a menção prevista para “países mais vulneráveis” e “países menos vulneráveis” também foi alterada para um termo mais genérico: “regiões”.
Há uma discussão que cresceu nos últimos anos, particularmente na última Conferência do Clima (COP26), relacionada às perdas e danos já sentidos por alguns países.
São nações que não têm uma alta taxa de emissões de gases do efeito estufa, mas que são bastante impactadas pelo problema: é o exemplo de Tuvalu, uma das ilhas localizadas no meio do Oceano Pacífico, a poucos metros acima do mar. Ela corre o risco de desaparecer nas próximas décadas devido ao aumento do nível do mar causado pelo aquecimento global.
Tuvalu deve bancar sozinha os impactos? Mesmo que Estados Unidos, China, União Europeia, Rússia, Índia e Brasil tenham uma responsabilidade histórica maior?
Em 2021, na COP26, apesar da assinatura de todos os países-membros ao final do evento, alguns discursos criticaram as questões de “perdas e danos”. Os países já afetados pelas mudanças climáticas defenderam o financiamento de países ricos pelos problemas causados pelas emissões de carbono.
Há na mesa o compromisso de pagamento de US$ 100 bilhões por ano até 2025 por países desenvolvidos, uma forma de equilibrar o jogo com as nações afetadas. Por outro lado, especialistas entrevistados pelo g1 apontam que o financiamento não pode ser o entrave para que alguns países tomem medidas contra as mudanças do clima. É o caso do Brasil, que defende receber financiamento por parte de países desenvolvidos, mas mantém uma taxa de desmatamento superior a 13%.
5. Em pequena escala, humanidade adota medidas de adaptação
Ao falar das adaptações às mudanças do clima, o relatório aponta que a humanidade tem feito progresso em adotar algumas medidas, com múltiplos benefícios.
“A boa notícia no relatório é que a humanidade já vem adotando medidas de adaptação, sem as quais os impactos já verificados hoje seriam muito maiores. O problema aqui são dois: primeiro, as medidas vêm sendo adotadas em escala muito pequena, sem o financiamento necessário, ‘incrementais e reativas’. Há um hiato entre as medidas de adaptação adotadas e as que precisam ser colocadas, que precisa ser fechado nesta década”, aponta o OC.
Além disso, segundo o Observatório, “algumas medidas de adaptação podem piorar a situação”. O IPCC chega a usar o termo “maladaptação” e lista entre os exemplos a construção de hidrelétricas em regiões que podem ser afetadas pela seca. Apesar de resolver uma parte do problema, a população acaba afetada e se torna ainda mais exposta.
“É essencial também que nas cidades e nos ecossistemas sejam criadas infraestruturas capazes de reduzir riscos e impactos climáticos, levando em consideração o conhecimento das populações locais. O caminho a ser percorrido passa, portanto, pela necessidade de maior financiamento das soluções de mitigação e adaptação, a fim de promover desenvolvimento econômico, particularmente das comunidades mais vulneráveis”, defendeu a World Resources Institute (WRI), instituto ligado a proteção do meio ambiente.
Fonte – G1